Símbolo da santidade, majestade e força – II

Percorrendo o périplo que nos conduz das realidades visíveis às invisíveis, por meio da bondade e beleza das criaturas, chegamos a Deus, Nosso Senhor. Nada torna a vida tão agradável e interessante quanto fazer este tipo de meditação.

 

Estamos longe de analisar o leão simplesmente enquanto um animal forte que domina os outros. Consideramo-lo, isto sim, como um ser de uma rara beleza, que exprime certos predicados intrínsecos de sua natureza, entre os quais um determinado tipo de força e de coragem.

Força régia a serviço da majestade

A força possui todas as características do vigor a serviço de quem é rei. É uma força régia, quer dizer, de quem tem o direito e a missão de mandar, possui a nobreza intrínseca de uma superioridade de alma inerente ao ser dele, tem um direito normal a ocupar os cargos de mando e deve normalmente ocupar esses cargos. E por causa disto o leão exprime a ideia de força régia a serviço de uma majestade régia e dominadora. O papel da heráldica é exatamente pintá-lo de um modo meio irreal, que exprima o melhor da realidade dele, de maneira que se percebe mais facilmente do que num leão de verdade. O que, aliás, é sempre o papel da arte: desfigurar um pouco a realidade para obter o melhor da realidade.

O leão é, em última análise, o símbolo da majestade, a qual inclui, entre outras coisas, a força. É próprio da majestade ser suprema dentro da ordem e da lei, um ente supremo que funciona segundo a ordem natural das coisas e mantém esta ordem. O adequado da lei é ser um ditame da razão, promulgado pela autoridade competente; essa é a definição de lei. O próprio do rei, que é o autor da lei, é de ser o auge do bem, o auge da sabedoria, o auge da justiça e o auge da força.

O leão tem exatamente isto: está numa harmonia com toda a natureza, é uma espécie de obra-prima da natureza. E, enquanto tal, é verdadeiramente régio porque supremo na boa linha, na boa ordem; supremo considerado como tendo uma força que lhe assegura o exercício da supremacia que lhe compete.

Um animal ordenador

De onde, então, existe uma ideia de santidade ligada ao conceito de leão. Ele representa o que há de santo na dignidade régia. Porque o que há de santo, de reto conforme a ordem estabelecida pelo Criador, de supremo, de excelente feito por Deus, o leão representa. De maneira tal que assim como, por exemplo, na heráldica, temos águias com halos de santos, nós poderíamos ter um leão com um halo de santidade. Pelo mesmo título; e até a um título mais alto. O que quer dizer a santidade da majestade? A majestade é o poder supremo legítimo, e toda autoridade legítima enquanto tal é santa. Quer dizer, foi instituída por Deus para um fim santo. Posso falar da santidade de qualquer autoridade: por exemplo, de um professor dentro da sala de aula. Segundo a própria expressão da palavra “santo”, a autoridade do professor sobre os alunos decorre da ordem natural estabelecida por Deus. E enquanto querida pelo Criador para um fim bom aquela função é santa. Nesse sentido a função de rei é ainda mais santa, porque mais alta, mais nobre; é a mais alta de todas na esfera temporal, portanto enquanto tal ela é a mais santa de todas.

O resultado disso é que se eu souber fazer uma boa interpretação do leão, nele deverei ver a majestade santa, portanto sabedoria santa pelo discernimento com que ele cumpre o seu papel; força santa porque colocada a serviço de quem precisa mandar e para o estabelecimento da ordem que deve reinar. O leão é um animal ordenador. O contrário de um chacal, por exemplo, que tira os cadáveres da tumba, os devora e deixa toda a sujeira sobre a terra.

Quem considera assim a figura de leão fica conhecendo o que é santidade, majestade e força.

A convergência da teoria com o concreto proporciona o conhecimento pleno

Alguém poderia objetar que esse é um modo medíocre de conhecer esses predicados. Melhor seria tomar um compêndio de Moral católica ou uma enciclopédia e ver a definição de majestade, santidade e força. Para que toda essa explicação sobre o leão? A definição abstrata é muito mais enriquecedora do que a noção de leão.

Eu digo: é preciso ter as duas coisas. Para um completo conhecimento do que é a santidade, a majestade e a força é necessário conhecer a definição e depois ir ao leão e verificar como essa definição se aplica a ele. A meu ver, quem se contenta com apenas uma dessas duas formas de conhecimento faz o papel de um homem que diz o seguinte: “Eu posso perfeitamente vender um olho para um transplante, porque com um olho só vejo bem. Basta-me ver com um olho só”.

Ora, embora se veja com um olho, a visão completa se obtém pela conjugação dos dois olhos. É aí que a noção completa da coisa se estabelece. A convergência da noção teórica com a coisa concreta bem analisada é que dá o conhecimento pleno. Nós não podemos nos contentar com uma coisa ou com outra. O espírito integralmente formado quer as duas coisas.

Um homem que tenha tido a oportunidade de ir a um parque de leões e analisar tal atributo em um leão, tal predicado em outro, tal atitude num terceiro, e depois considerar o leão heráldico como reunindo todas as características vistas nos vários leões, e só então conferir com a noção consignada no dicionário, ficará com a ideia completa e íntegra de santidade, majestade e força.

O Leão de Judá

Vendo as coisas assim, uma pessoa com a mentalidade bem constituída ficaria com a alma cheia de cogitações. Ao invés de pôr um ponto final no processo intelectual, começaria a levantar uma pergunta: Se a santidade e a majestade são qualidades tão belas, a santidade de uma função é algo tão bonito, se é tão esplêndida a força quando colocada a serviço da majestade, não haverá outros seres nos quais eu possa considerar, para nutrimento de minha alma, maior majestade, maior força, maior santidade? Minha alma já se extasia vendo esses atributos simbolizados no leão, mas eu quisera ver mais.

Vem, então, a conclusão: no homem precisa haver mais majestade. Devem existir homens que me deem essa ideia de um modo mais perfeito do que o leão. Que homens terão sido?

A pessoa passará, então, a estudar os homens que foram majestosos na Terra como, por exemplo, Carlos Magno, São Luís IX. E, de majestade em majestade, chegará Àquele que a Escritura qualificou de Leão de Judá: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Contempla o Santo Sudário de Turim e diz: “Nenhuma majestade realizada por um filho de homem atingiu a daquele infortúnio, daquela dor, daquela certeza, daquela esperança e daquela recusa. Aquela é a majestade das majestades, a mais alta das majestades que a face humana possa exprimir!”

Então, na sua peregrinação pelas majestades, essa pessoa vai estudar a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho. E, após ter considerado a própria humanidade do Redentor, dirá: “Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua humanidade, é Corpo e Alma. Entretanto, eu vejo apenas os reflexos da Alma no Corpo, não vejo a Alma. Que feliz seria eu se contemplasse a Alma d’Ele diretamente! Como veria melhor a majestade e a santidade d’Ele se eu pudesse ver a Alma d’Ele, e não apenas a sua face divina!”

E depois dirá mais ainda: “A Alma d’Ele é humana, e tudo quanto é humano é limitado. Deve haver algo infinitamente maior do que a Alma humana d’Ele, e que tem uma majestade, uma santidade e uma força que, estas sim, concebidas em último grau, enchem completamente a minha alma. Para contemplá-las eu serei capaz de todos os esforços, todas as renúncias, todos os sacrifícios. É a natureza divina d’Ele. Porque Deus é infinito, supremo, perfeito, Ele tem tudo. Há, portanto, um Ser incriado que foi o ponto de partida de todas as coisas, e que possui num grau infinito aquilo que eu comecei a considerar no leão de um modo finito”.

Meditação com seu périplo total

Neste ponto os olhos se voltam novamente para o leão e a pessoa passa a ver nele, em todos os seus movimentos, em toda a sua sublimidade, reflexos criados da natureza divina; um espelho de perfeições inexcogitáveis e infinitas de Deus das quais, entretanto, a cada movimento do leão pode-se ter uma certa ideia. Porque, ao contemplar aquilo e perguntar-se como seria em ponto infinito, fica no fundo da alma algo de indizível, objeto de uma meditação propriamente religiosa e que lhe dá a verdadeira apetência do Céu.

Esta é a fase religiosa e final da meditação. É um tipo de meditação caracteristicamente da quarta via de São Tomás de Aquino(1) que, através de um ente criado, nos eleva até o Céu, mas depois nos faz voltar aos entes criados para ir degustando-os como prelibações do Paraíso, ocasiões de sentirmos um antegozo do Céu. Assim levamos a vida cercados de coisas palpáveis e visíveis, sempre considerando as coisas impalpáveis, supremas e invisíveis que elas representam.

Então eu tenho o leão, acima dele o rei, acima do rei os Anjos, acima dos Anjos Nossa Senhora, infinitamente acima de Nossa Senhora, Nosso Senhor Jesus Cristo, e em Nosso Senhor Jesus Cristo tenho o próprio Deus.

Quer dizer, por esta forma eu faço todo um circuito. E compreendo perfeitamente que no Reino de Maria houvesse, por exemplo, uma igreja consagrada a Nosso Senhor Jesus Cristo, onde existisse, quiçá do lado de fora, na praça pública, um leão heráldico, escultura talvez fundida em ouro, na base da qual estivesse escrito “Imagem do Leão de Judá”. Sei que essa escultura deixaria muita gente furiosa, mas isso seria exatamente fazer uma meditação com seu périplo total.

A graça de ver os imponderáveis da Criação

É próprio à natureza humana desejar levar uma vida agradável sobre a Terra. Eu lhes posso garantir que nada, no sentido mais estrito da palavra, torna a vida tão agradável e interessante quanto vivê-la assim. Um homem que não vive desse modo está para quem vive pior do que um cego em relação a quem enxerga normalmente. Mas muito pior, não há comparação.

Poderíamos encerrar estas considerações com a seguinte súplica a Nossa Senhora:

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles e de ser impelido assim, por um amor desinteressado, à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica, puramente espiritual e, por fim, à de vosso Divino Filho que na sua humanidade santíssima é o ápice e a síntese de toda a Criação. Fazei-me em seguida, por um voo ainda mais possante de desinteresse e enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me assim para entrar nele e lá Vos louvar por toda a eternidade.          v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

 

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.