São José de Cupertino, modelo de despretensão

 

Até mesmo os homens pouco dotados naturalmente, tornam-se capazes dos maiores sucessos quando fazem a vontade de Deus. Eis São José de Cupertino, um eloquente exemplo da omnipotência divina:

Há uma ficha biográfica(1) sobre São José de Cupertino digna de comentário:

Se houve um homem pobremente dotado de qualidades naturais, este foi José de Cupertino.

No momento do seu nascimento, devido às dívidas de seu pai, apreendiam o mobiliário de sua família, e sua mãe viu-se na contingência de dar à luz num estábulo.

Filho de artesãos, atrofiado, doentio, desprezado por todos, escarnecido pelos amigos que o chamavam de “Boca Aberta”, foi também repudiado pela própria mãe. Com uma úlcera gangrenosa, passou a infância entre a vida e a morte, até ser curado por um religioso.

Ele era incapaz de passar num exame; impossibilitado de manter uma conversa; não conseguia cuidar de uma casa nem tocar num prato sem quebrá-lo; tinha aspecto inútil e de quem presta poucos serviços.

Quando, mais tarde, quis abraçar a vida religiosa, enfrentou as maiores dificuldades. Entrou para os capuchinhos como converso, mas sua incapacidade natural e sua preocupação sobrenatural como que se uniam para torná-lo inepto para com tudo. Chamava-se a si próprio Frei Burro.

Enquanto seu desajeitamento patenteava-se, sua santidade não era percebida por ninguém.

Acabaram os religiosos por considerá-lo absolutamente insuportável. Arrebatado em êxtase em meio aos cuidados do refeitório, deixava cair os pratos e as travessas, cujos fragmentos lhe eram colados no hábito em sinal de penitência.

Servia pão preto em lugar de pão branco. Para transportar um pouco de água de um lugar para outro, foi-lhe preciso um mês inteiro. Finalmente, considerando que ele não servia nem para os serviços materiais nem para a vida espiritual, despediram-no do convento.

Expulso ainda de outras casas religiosas, José acaba sendo admitido no convento de Grotela. Neste novo convento foi incumbido do tratamento de uma jumenta.

Ele mal sabia ler e escrever e queria ser sacerdote. Nunca pôde explicar nenhum dos textos evangélicos, exceto o que continha as palavras “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

Ao fazer o exame de diaconato, o Bispo abre o livro dos Evangelhos ao acaso, e manda o candidato comentar a frase “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

José explicou superiormente. Restava o exame para o sacerdócio. Ora, todos os postulantes, exceto José, sabiam a matéria com perfeição. Os primeiros que fizeram o exame, fizeram-no de maneira tão brilhante que o Bispo parou antes de ter examinado a todos. E, julgando a prova inútil, admitiu em conjunto os que restavam, entre eles, José.

No dia 4 de março de 1628, José tornou-se sacerdote, a despeito dos homens e das coisas, apesar de todas as suas incapacidades reconhecidas, mas esquecidas.

Em que sentido São José de Cupertino é modelo dos católicos?

O santo canonizado pela Igreja é indicado como modelo para todos os católicos. Ora, não é vocação de todos os homens serem tão desprovidos de capacidades quanto São José de Cupertino… Devemos, então, nos perguntar em que sentido ele pode ser considerado modelo, e assim ser admirado e imitado por todos os fiéis.

O admirável equilíbrio da Igreja, mestra da Sabedoria

Há na Santa Igreja um aspecto admirável: ela é a mestra da Sabedoria, a mestra do equilíbrio. Ou seja, a Igreja Católica aponta com exatidão para o equilíbrio entre coisas aparentemente inconciliáveis.

Assim, a Igreja tem suscitado inúmeros santos de uma inteligência extraordinária, santos reis ou imperadores; mas também tem elevado aos altares homens pouco capacitados, desprovidos de valor pessoal, como São José de Cupertino.

Como harmonizar ambas as coisas?

Operar segundo a vocação específica

Quando alguém ama a Deus com todo o empenho de sua alma, procura cumprir tudo quanto está em sua vocação fazer. O homem eficiente não é o que faz algo fora de sua vocação. O cúmulo da ineficiência é operar fora de seu chamado pessoal.

Imaginemos uma orquestra cujo violinista tocasse não com um violino, mas com um violão. Desse modo ele atrapalharia a orquestra inteira, pois tendo uma função dentro do conjunto e executando-a de modo indevido, sua eficiência chama-se atrapalhação…

Ora, isto se passa com cada homem. A ordem das coisas consiste em operar de acordo com os planos da Providência. Quem “toca” fora dos planos de Deus, quanto mais eficiente seja, tanto mais errado está!

De maneira que um homem deve perguntar-se se está sendo capaz de executar a vontade de Deus a respeito de si, ou não.

Para fazer a vontade de Deus não é preciso ter inteligência, mas, sim, amor

Para realizar os planos da Providência é necessário observar a vontade de Deus, amando-O sobre todas as coisas, até o completo esquecimento de si próprio.

Com quem procede deste modo, Deus dispõe de tudo para realizar seus desígnios para com aquela alma. Por essa razão, antes mesmo de procurar conhecer os talentos de um homem, deve-se perguntar se ele ama a Deus e conhece os planos de Deus a seu próprio respeito.

Então, conhecer significa ser capaz de distinguir a vontade de Deus, e para tanto não é necessário ter inteligência, basta ter amor.

Para admirar os planos de Deus, urge amá-Lo inteiramente. E para quem O ama, Deus realiza grandes maravilhas a fim de que seus planos tornem-se realidade. Basta apenas notar como Deus Se fez servir por santos de todos os níveis e de todas as espécies de capacidade.

Pois a Providência ora suscita homens como São Tomás de Aquino ou Beato Angélico, com uma evidente capacidade natural; ora suscita um pobre incapaz como São José de Cupertino, o qual, por ser um verdadeiro santo e atender aos desígnios da Providência, fez a obra de Deus.

Assim, Deus faz brilhar todos os seus santos, permitindo que eles realizem maravilhas superiores às suas próprias energias, possibilidades, talentos ou capacidades, porque estão nas vias da Providência e realizam a sua obra.

Nos dois extremos da capacidade humana, de São José de Cupertino a São Tomás de Aquino, os santos sempre realizaram muito mais do que sua capacidade natural permitiria.

Apontando para o verdadeiro valor da vida

Numa sociedade fortemente hierarquizada, cujas riquezas aumentavam cada vez mais, onde o prestígio era um bem distribuído largamente por todas as camadas sociais, era necessário haver um contrapeso que equilibrasse os homens na virtude. Esse equilíbrio era feito por pessoas que abandonavam tudo, e que por seu exemplo ajudavam os que não eram chamados a uma completa renúncia a desapegarem-se interiormente dos bens que possuíam.

Caso São José de Cupertino — famoso por suas limitações e incapacidades — percorresse alguma cidade com as multidões afluindo à sua volta, e numa outra alameda passasse, por exemplo, um mestre universitário cortejado pelos estudantes — que naquele tempo estendiam suas capas ao chão para o professor, em honra da magnífica exposição que os deixara entusiasmados —, qual não seria a grande lição para o professor inteligente, notar a glória de São José de Cupertino e compreender que toda a glória de sua própria inteligência não era nada, caso não fosse orientada para Deus?

Compreende-se então como tal atitude auxiliava os grandes da Terra a compreenderem o que significa a verdadeira grandeza e a mantê-la dentro de seus limites, fazendo com que ela fosse bondosa, dadivosa, generosa, e existisse para o bem de todos, e não somente para mandar.

O maravilhoso equilíbrio dos extremos harmônicos

Evidenciam-se então os equilíbrios maravilhosos da Igreja.

Assim, o casamento mantinha-se indissolúvel, porque havia homens e mulheres que, praticando uma castidade perfeita, renunciavam constituir família; havia gente capaz de fazer bom uso da conversa, pois existiam almas que se votavam ao silêncio perpétuo por amor a Deus. Deste modo, os indivíduos eram capazes de fazer bom uso da riqueza, porque certas Ordens religiosas eram entregues à mais completa observância da pobreza, como, por exemplo, os franciscanos.

É levando, de um lado, a pobreza até seu último extremo que, de outro lado, se torna possível levar ao último extremo a riqueza. O rico será equilibrado na posse de sua riqueza e fará dela um uso benfazejo, desde que veja o exemplo daquele que renunciou a coisas que estão em suas mãos. Com o exemplo do religioso que fez o voto de pobreza, o rico poderá utilizar-se de suas riquezas; assim como o homem sociável e brilhante, que reúne uma grande roda em torno de si, e torna-se um dos centros da vida social de sua cidade, poderá fazer bom uso desse prestígio se tiver próximo de seu ambiente um convento de freiras que nunca falam.

Essa perspectiva leva todas as coisas aos seus extremos harmônicos. E a Santa Igreja obtém aquele equilíbrio maravilhoso de que é verdadeira mestra.

Essa é a verdadeira forma de compreender a vida de São José de Cupertino. Pois ele é um dos extremos da Civilização Católica. Extremos, entretanto, conciliáveis.

No Céu, será possível ver, lado a lado, São José de Cupertino e São Tomás de Aquino venerando a Nossa Senhora, e adorando a Nosso Senhor Jesus Cristo, cantando juntos, por toda a eternidade, hinos.

Os metafísicos ensinam que a harmonia perfeita não é aquela que reúne coisas análogas ou iguais, mas sim aquela que cobre uma imensa gama de diferenças, encontrando pontos de analogia e mostrando onde essa harmonia se produz.

Abandonado até por Deus…

Há ainda outro interessante aspecto da vida de São José. Continua a ficha:

A miséria material a que se condenara complicou-se com uma miséria interior bem diversa: as consolações com que fora amparado desde a infância deram lugar a uma secura triste e sombria, que aumentava a cada dia.

Escrevia ele a um amigo: “Eu me queixava muito de Deus, com Deus”.

Que linda frase! Queixar-se de Deus com Deus. Também Nossa Senhora procedeu assim ao dizer a seu divino Filho: “Meu filho, por que fizeste isso?”

É uma linda atitude: fugir de Deus para dentro dos braços de Deus. Como isso é superior!

Eu havia deixado tudo por Ele, e Ele, em vez de me consolar, me entregara a uma angústia mortal.

Percebe-se neste trecho o valor dos bens espirituais sobre todos os outros. Ele era privado de todos os bens da Terra, porém, não se incomodava. A partir do momento em que lhe faltaram as consolações espirituais, ele soube recorrer a Deus.

Um dia, como eu chorasse, como eu gemesse — só de pensar me sinto morrer —, um religioso bate-me à porta. Não respondo.

Ele entra, e diz: “Frei José, que tens? Aqui estou para servir-te. Olha, aqui está uma túnica. Pensei que não tinhas túnica”.

Efetivamente, minha túnica caía aos pedaços. Vesti a que trazia o desconhecido e todo o meu desespero desapareceu no mesmo instante. Ninguém reconheceu jamais o religioso que tinha trazido a túnica.

Diz a Sagrada Escritura: “Olhai os lírios do campo: não tecem nem fiam; entretanto, Salomão, em toda a sua pompa, não se vestiu como eles”.

Ora, o que é o suntuoso manto de Salomão comparado a essa túnica, trazida nessas circunstâncias, talvez por um Anjo do Céu?

A partir do momento em que lhe foi restituída a consolação, a vida de São José foi uma verdadeira maravilha.

Amar a Deus e andar em suas vias, só isso basta!

Que lição pode-se tirar da vida de São José de Cupertino?

Ele provou para os séculos futuros que um homem pode ser sumamente venerável, por mais que seja um rebotalho. Por mais desprezado que fosse, São José possuía a única coisa necessária: andar nas vias de Deus.

Essa realidade é uma lição de humildade para compreendermos quão grande se torna o homem que realiza os planos de Deus a seu próprio respeito, ainda quando a natureza em nada auxilia ou concorre para isto.

Se alguém se encontrasse com São José de Cupertino, como se sentiria pequeno e nulo, tendo a inclinação de se ajoelhar e pedir com respeito um conselho dele! Diante dele, cada palavra saída de seus lábios tomaríamos como uma gota do próprio manancial da sabedoria: Frei Asino falou, é uma lei, é um decreto. Tal é a glória daqueles que fazem a vontade de Deus, mesmo quando humanamente nada são.

O homem eficiente e bem sucedido é aquele que cumpre a vontade de Deus

O grande princípio que daí se conclui é que a maior forma de grandeza consiste em fazer a vontade de Deus.

Só teve uma vida digna de nota, na qual todas as aptidões e a luz primordial(2) atingiram seu ápice, o homem que, no momento de sua morte, considerando sua vida, vê o plano que Deus executou por seu intermédio e percebe que o desígnio de Deus se realizou. Quem no retrospecto de sua vida é capaz de notar isso, morre justificado. Esta é propriamente a felicidade.

O grande homem, o homem eficiente, resume-se em quem conseguiu cumprir plenamente a vontade de Deus a seu próprio respeito. Em latim, “facere” é um vocábulo que significa “tirando de dentro de si”. “Efficiens” é uma eficácia que sai de dentro de si mesmo. O homem eficiente é aquele que faz. Mas faz o quê? Faz a vontade de Deus, pois caso contrário será capaz somente de praticar erros ou crimes. Por essa razão, a única preocupação em matéria de eficiência deve ser esta: saber qual é a vontade de Deus.

O exemplo da Santíssima Virgem: “Eis a escrava do Senhor…”

Não poderia ser esquecido o sumo exemplo dado por Nossa Senhora.

Como Ela Se definiu a Si mesma para o Anjo que vinha lhe trazer o anúncio de Deus? No momento em que São Gabriel declarou que Ela seria a Mãe do Redentor, qual foi a fórmula por Ela utilizada para afirmar que aceitava esta honra inimaginável?

Ela lhe respondeu: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”. Ou seja, Ela Se definiu a Si própria como Aquela que realiza o desígnio de Deus expresso em sua palavra. Esse é o verdadeiro conceito de submissão a Deus: é a vontade d’Ele realizando-se em nós. O homem bem sucedido e eficiente, por excelência, é aquele que foi escravo de Nossa Senhora e fez a vontade d’Ela e de seu divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/10/1968, 25/10/1968 e 26/10/1968)

1) Não possuímos a fonte desta ficha.
2) Luz primordial: Dr. Plinio assim denominava a verdade ou virtude, ou o conjunto de verdades ou virtudes, que uma alma é especialmente chamada a admirar e praticar.