São Clemente Maria Hofbauer e a lição do “rio chinês”

 

Arrostando um quotidiano semeado de ziguezagues, onde o caminho traçado pela Providência parecia mudar a todo momento, São Clemente Maria Hofbauer (1751-1821) se manteve incólume na Fé. Firmeza esta muito admirada por Dr. Plinio, cujos comentários à vida do santo redentorista o exaltam como exemplo de constância e confiança diante das aparentes contradições no cumprimento do chamado divino.

A vida de São Clemente Maria Hofbauer se reveste de um interesse particular, pelo fato de nos servir como exemplo de confiança e perseverança no meio das adversidades. Com efeito, sua existência se compõe de dois aspectos. Primeiro, uma longa trajetória de “rio chinês”(1), na qual ele, homem inteligente e dotado de maravilhoso poder de atração e de persuasão, parecia fadado a uma vida quebrada, errada, fracassada. Dir-se-ia que a Providência o chamou para algo superior, mas orientou seus passos num rumo diverso, fazendo-o conhecer, larga e dolorosamente, as vias tortuosas de um ziguezague aparentemente incompreensível.

O segundo aspecto é o da vitória sobre o primeiro. Após uma série curiosa de circunstâncias, tudo se transforma nos dez últimos anos da vida de São Clemente. Ele se viu transferido para Viena, cidade‑chave dos acontecimentos políticos e sociais europeus do seu tempo, e ali esse homem, até então posto à margem, exerceu profunda influência nas almas de pessoas igualmente chaves, e realizou assim a missão para qual fora suscitado por Deus.

Após sua morte, em idade não muito avançada, multiplicaram‑se os milagres operados por sua intercessão. Abriu-se o inquérito de sua existência, sua santidade foi comprovada e a Santa Sé o canonizou. É o grande São Clemente Maria Hofbauer.

Piedoso desde menino

Ele nasceu no território do antigo Império Austro‑Húngaro, cuja capital era Viena, debaixo de certo ponto de vista o centro de gravidade da Europa. Seu pai, de origem tcheca, era um homem de condições bastante modestas, e mudou-se com a família para Viena, à procura de melhores oportunidades. O jovem Clemente contribuía para aumentar o orçamento doméstico: levantava-se de madrugada e, nas primeiras horas do dia, punha-se a distribuir pães pelas ruas de Viena que despertava.

Pelo que consta em suas biografias, foi desde menino muito piedoso e devoto da Santíssima Virgem. Freqüentava os sacramentos, e levava uma existência modelar, ocupada, semeada de trabalhos, na qual a graça lhe falava e atuava na alma.

Assim, enquanto entregava os pães, Clemente refletia, dava-se a meditações cujo fundo, pode-se entrever, era essencialmente religioso e que o amadureciam para, em determinado momento, encontrar sua vocação.

Eremita nas florestas européias

Após algum tempo desse cotidiano de esforços e reflexões, e ainda durante seus afanosos dias, através da ajuda de benfeitores que se interessaram por ele, São Clemente pôde cursar a universidade, e se mostrava aluno muito estudioso.

A Providência, porém, reservava-lhe o “rio chinês”. Certa ocasião a graça lhe bate à porta da alma: “Tu serás ministro de Deus. Interrompe teu curso acadêmico e dirige seus passos para a vida sacerdotal”. E no intuito de prepará-lo para ingressar nessas novas vias, Nosso Senhor o inspirou a se tornar eremita. Naquele tempo, a Europa era muito menos povoada, havia regiões silvestres mais abundantes do que em nossos dias, e os desejosos de se retirarem do mundo iam viver nas florestas, como outrora viviam os eremitas nas tebaidas do Egito.

Na congregação redentorista

Após um tempo de isolamento, São Clemente Hofbauer se depara novamente com o “rio chinês”. Movido pela graça, ele procura outro eremita que habitava pela mesma região, e lhe disse: “Irmão Hübl (era o nome do amigo), façamos uma peregrinação a Roma, a pé, porque lá nos espera um maior chamado de Deus”. Hübl aceitou.

Partiram, atravessando aqueles desfiladeiros, vales e montanhas, correndo toda espécie de perigos, até alcançarem a Cidade Eterna, onde se hospedaram numa pensão qualquer. No dia seguinte, pela manhã, decidiram ir à Missa. São Clemente disse ao companheiro: “Roma é tão grande, tem centenas de igrejas, e não sabemos a qual ir. Então, a igreja cujo sino ouvirmos em primeiro lugar, é aquela onde assistiremos a Missa. Vamos esperar que ali haja algo da Providência para nós”.

Dali a pouco, no meio do silêncio de uma Roma ainda sonolenta, o eco de um sino se fez ouvir. Os dois logo se puseram a caminho em direção ao local de onde partia o som, e encontraram uma pequena igreja. Entraram e se sentiram inundados de consolação ao participar da celebração eucarística. Todo o ambiente lhes pareceu muito piedoso. Era uma igreja dos padres redentoristas, filhos de Santo Afonso de Ligório.

Ao término da Missa, São Clemente e o amigo procuraram se informar a respeito da instituição que cuidava daquele templo, e lhes explicaram tratar-se de uma obra destinada a difundir em todas as classes sociais a doutrina católica e a religião, por meio da oratória e da pregação.

São Clemente sentiu que era aquele o chamado de Deus. Solicitou um encontro com o superior daquela comunidade, e expôs a este os seus anseios.

— Ora, então o senhor acaba de encontrar o que procura — respondeu-lhe o padre. — A vocação que deseja abraçar é essa, ela realiza seus desejos.

— Quer dizer que o senhor nos aceita como noviços redentoristas?

— Aceito!

Após uma certa relutância de Hübl, os dois ingressaram na ordem redentorista. Mais uma lição do “rio chinês”: seria normal que ambos estivessem de pleno acordo, e o amigo fosse um poderoso auxiliar para São Clemente. Pelo contrário, tornou-se naquele momento um fardo. Se São Clemente desistisse, provavelmente ter-se-ia mudado a história da congregação redendorista e de uma importante obra da Igreja. Não desistiu. Insistiu, perseverou, convenceu o amigo.

Precioso ensinamento para nós. Se quisermos andar depressa rumo ao mar em que acaba o “rio chinês”, carreguemo-nos de fardos. Suportemos tudo, sejamos amáveis para com os ingratos, e o nosso objetivo caminhará em direção a nós. A distância rumo ao mar se encurta, se aceitarmos escolhos nas nossas costas. Aceitemos as atrapalhações, como Nosso Senhor Jesus Cristo aceitou a cruz.

De cidade em cidade, fazendo o bem

Entram na congregação redentoristas, são ordenados padres, e recebem do superior geral a incumbência de fundar uma casa e fazer apostolado em Varsóvia, na Polônia. Ali, acompanhados de um terceiro, hospedam-se nas dependências de um convento quase em ruínas, onde quatro padres de uma ordem em extinção lhes deram abrigo. O lugar era uma velha tapera. São Clemente e os dois companheiros começaram a trabalhar, a pregar missões, e atraíram o povo. O velho convento encheu-se de gente, o fervor reverdeceu nas almas, e a vida de piedade se desenvolvia naquela região.

Foi o bastante para incomodar as autoridades civis e anticlericais sob cujo governo eles se achavam. Não demorou para que viesse um decreto ordenando o fechamento do convento. São Clemente consulta o geral dos redentoristas, e recebe a resposta: “Partam para a Suíça, procurem as cidades católicas e ali se estabeleçam. Se forem expulsos de um lugar, dirijam-se para outro. E assim vão passando de cidade em cidade, fazendo o bem”.

Não é difícil compreender que vida de ziguezague e de vaivens que tal programa anunciava. E assim foi, literalmente. Estabeleciam-se numa cidade, pregavam, colocavam a vida religiosa do povo em ordem, e, pouco depois, uma ordem do governo local os expulsava.

Anos e anos de apostolado transcorreram dessa maneira. Por toda a parte aonde ia, São Clemente fazia o bem, e muito bem. Mas, a Providência permitia que logo fosse removido, à semelhança de uma plantação que o agricultor é obrigado a transferir de terra para terra, sem que nenhuma produza todos os frutos que se era de se desejar. São Clemente passou, na aparência, fazendo ninharias fracassadas ao longo de mais ou menos vinte anos de sua vida.

No centro do movimento romântico

Afinal de contas, depois de percorrem as cidades católicas da Suíça, recebem ordem do superior geral de retornarem a Viena.

De volta à capital do império, São Clemente começou a prestar assistência religiosa nessa e naquela igreja, num convento e noutro, e, a partir daí, a ter uma certa influência nos meios católicos vienenses.

As vias da Providência, através de sendas tortuosas, o encaminharam para aquela situação. Depois de tanto labutar em terrenos menos férteis, São Clemente Maria Hofbauer se viu posto no próprio centro de um movimento que, naquele tempo, ia tomando conta da Europa, e que tinha em Viena um de seus principais focos de irradiação: o chamado movimento romântico. De tal maneira que alguns homens, cujos nomes se acham nos compêndios de Filosofia, tornaram-se comensais de São Clemente, porque foram por este convertidos.

O apostolado do santo tomava envergadura e alcançava ótimos resultados. Aquelas celebridades anunciavam sua conversão e passavam a ser excelentes católicos, militantes, empenhando-se em atrair outros para a Igreja.

Por razões de vida social, esses intelectuais eram ligados a pessoas da nobreza de Viena e, sobretudo, de Budapeste. Assim, estabeleceram-se assíduas relações entre São Clemente Hofbauer e os nobres húngaros, donde também resultaram inúmeras conversões.

Com isso, o movimento romântico mudou de figura e passou a ser organizado por São Clemente, de propósitio, para dar uma orientação católica aos rumos do império austro-húngaro. Ele procurou constituir uma obra, não predominantemente de padres, mas de leigos postos em situações estratégicas na vida social e política, alguns com altos cargos diretivos, que tinham por missão trabalhar no respectivo meio de maneira a formar um grupo católico de irradiação. Através dessa influência, poderiam alcançar o objetivo que os norteava, ou seja, alicerçar a sociedade nos fundamentos da doutrina católica apostólica romana.

Ação de presença no apostolado

É interessante salientar um aspecto do apostolado de São Clemente Maria Hofbauer: o modo como ele convertia as pessoas.

Pelas narrações de sua vida, percebe-se que São Clemente era uma inteligência pouco acima da média, em comparação — note-se — com os filósofos e pensadores inteligentíssimos que se deixavam convencer por ele. Então, alguns redentoristas, curiosos de saber o “método” empregado pelo santo, procuravam esses convertidos e lhes perguntavam como as coisas tinham se passado, se eles haviam se tocado por um jogo da razão ou por uma ação da graça.

Resposta: “Pela razão e pela graça. Clemente argumenta muito bem. Mas, além disso (e vem aqui o papel da graça), há algo nele de indefinido que nos toca no mais fundo da alma, fazendo-nos compreender a argumentação dele e, ao mesmo tempo, nos comovendo a respeito dessa argumentação. De maneira que ele não é um mero professor que atrai e convence, mas também um formador que move para a ação”.

Os inquiridores insistiam: “Como assim, algo indefinido?”

Os outros diziam: “Pelo modo de Clemente falar, pela sua personalidade imponente e influente, pela sua extrema bondade. Enfim, porque ele é ele. Não sabemos explicar exatamente como é, mas é assim! E estamos persuadidos.”

São Clemente tinha, portanto, sua boa e santa influência afirmada. A missão para a qual a Providência o suscitara estava cumprida. Pouco depois ele entregaria sua alma ao Criador. Obediente à vontade divina, submeteu-se aos sofrimentos do “rio chinês”. Mas, após ter provado todo o seu desinteresse e sua submissão caminhando nessa via sem sentido, num momento tudo se lhe abriu para que realizasse seu chamado.

Esta é, para todos nós, a grande lição da vida de São Clemente Maria Hoffbauer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/12/1990)

1) Imagem usada por Dr. Plinio para significar as idas e vindas numa determinada trajetória, até se atingir o objetivo desejado, assim como certos rios chineses que dão muitas voltas antes de alcançar o oceano.