São Beda – Venerabilidade e espírito católico

A Santa Igreja comunica uma nota de venerabilidade a tudo. O contrário disso é a influência exercida pela “heresia branca” e pela superficialidade otimista de nossos dias.

 

Segundo a ficha que tenho em mãos, São Beda, o Venerável(1), foi um dos sábios mais ilustres do seu tempo. Tal era a sua santidade que, por não poderem chamá-lo de Santo ainda em vida, deram-lhe o título de Venerável, que não perdeu depois da morte.

Título atribuído às pessoas cujo processo de canonização está em curso

Seria interessante fazermos um comentário não tanto considerando o Santo, mas o seu título. Ele era reputado como um dos homens de maior instrução e tão virtuoso que, não ousando os seus contemporâneos chamá-lo de Santo – porque ninguém pode receber este título antes de ser canonizado pela Igreja –, chamavam-no de Venerável. Porque Venerável é o título atribuído pela Igreja às pessoas cujo processo de canonização está em curso.

A aplicação desse título tem variado ao longo dos séculos, de acordo com os lugares e a disposição do Direito Canônico. Até algum tempo atrás, se chamava Venerável aquele cuja causa de canonização tinha sido introduzida, mas que ainda não havia sido beatificado. A beatificação se dava quando a Igreja, depois de examinar a vida e as obras de uma pessoa, concluía que ela havia praticado em grau heroico as virtudes teologais e cardeais. Deveria ser ratificada por um milagre e dava a certeza de que a pessoa estava no Céu. E importava a autorização para um culto local, ou no lugar onde a pessoa tinha vivido; “local” no sentido de circunscrito às capelas ou oratórios de uma Ordem Religiosa a que ela havia pertencido.

Depois, com a canonização que dependia apenas de novos milagres, a pessoa era elevada à honra dos altares, apontada como exemplo e posta como objeto de culto pela Igreja universal. O Venerável era, portanto, aquilo que hoje se chama o Servo de Deus, havendo todas as razões para supor que ele vai ser canonizado, uma vez que o seu processo foi introduzido. Mas, de fato, o número de processos de canonização que encalham em curso é muito grande.

Venerável era, portanto, uma pessoa digna de veneração, da qual se presumia a santidade. E eu queria me ater a esse título de Venerável para considerar um aspecto da Moral católica, o qual está muito pouco em foco hoje em dia, e que os costumes do mundo atual tornam especialmente ignorado e malvisto.

Perfil moral de uma pessoa venerável

O que é propriamente uma pessoa venerável? Diz-se que alguém é venerável, por exemplo, quando atingiu uma idade provecta e tem a seriedade e a dignidade desta idade. Assim, um homem de oitenta anos que cumpriu sempre os seus deveres, teve uma prole numerosa, praticou alguma ação insigne pela Igreja ou pelo Estado; aquela longa continuidade na prática de uma virtude, embora não seja uma virtude extraordinária, incute respeito. Então, se diz que essa pessoa é venerável, nós a veneramos.

Podemos dizer que é venerável um homem que, por exemplo, se portou heroicamente durante uma guerra e foi ferido em combate. Um general que ganhou muitas batalhas é um homem venerável. Por quê? Porque, evidentemente, ele praticou atos extraordinários, incomuns, que merecem  respeito. Uma religiosa que durante muito tempo cuidou dos leprosos, com risco do próprio contágio, é venerável. Porque uma longa prática de uma abnegação num estado de vida sumamente respeitável, como é o  religioso, enfrentando o risco de contágio, que aumenta a abnegação de que a religiosa deu provas, tornam-na venerável. Então, de todas essas aplicações correntes da palavra “venerável”, que não são suas aplicações canônicas, nós traçamos o perfil moral de uma pessoa venerável.

Venerável é uma pessoa que tem uma profundidade de espírito maior do que a comum, adquirida pelo estudo, pela experiência, pela meditação. Possui uma têmpera, uma força de vontade, uma constância incomum. Mesmo em circunstâncias adversas, com sacrifício de sua própria existência, sua saúde, de seu próprio conforto, de sua riqueza, ela traçou uma linha de conduta boa e a seguiu até o fim. Ela se faz notar por um modo de presença que incute o respeito. A pessoa venerável está presente, os outros amam de ver aquela respeitabilidade e a respeitam, têm uma tendência natural a se inclinar, a prestar reverência, a obsequiar; e fazem isso como quem pratica um ato de justiça devido.

Como vemos, a ideia de venerabilidade tem na sua raiz o conceito de seriedade, e como corolário a ideia de força e de abnegação. Quem é sério, forte e abnegado, torna-se respeitável. Aqui está o conceito de venerabilidade.

Seriedade, força, abnegação

Há no centro de São Paulo uma imagem que dá uma ideia bonita de venerabilidade: a de São Bento localizada no pórtico do mosteiro beneditino. Tanto aquela imagem quanto a fachada devem ser consideradas no momento em que o sino grave do mosteiro anuncia seis horas da tarde, quando, sobre a zoeira idiota e superagitada da cidade, descem aqueles sons meditativos, compassados e nobres. Então, temos as torres imutáveis, perpétuas, de um granito em que nada toca, que resiste a todas as transformações da cidade e são sempre as mesmas; um sino vinculado a uma tradição que vem do fundo dos séculos, com timbre grave, solene; o pórtico bonito, nobre, que avança sobre a rua, e a torre em cujo ângulo figura um Anjo apoiado sobre um letreiro que diz: “Ora et labora”. É o símbolo da venerabilidade. “Reza e trabalha” é o lema da Ordem de São Bento: medita, considera, contempla e trabalha com as suas próprias mãos.

Na frente, a figura de São Bento: um homem já sexagenário ou mais, com uma grande barba, um ar de pastor, com um cajado, olhando a cidade que passa. É o próprio exemplo da estabilidade, da seriedade, da profundidade de vistas, da alma patriarcal, do espírito varonil desses homens que não têm prole material, mas possuem prole espiritual infinda, e cuja figura se impõe à veneração de todos os séculos. Esta é a venerabilidade. Ela, como eu disse, tem como fundo a seriedade, como prolongamento a força e como ponto terminal a abnegação. Quem é sério, forte, abnegado, este é respeitável.

Quando virmos alguma coisa que não é venerável, tenhamos certeza de que ali não está o sinal distintivo, o espírito próprio da Igreja Católica. Ela comunica uma nota de respeitabilidade e de venerabilidade a tudo. A Igreja não toca em nada sem enobrecer aquilo em que tocou, e não há verdadeira nobreza que não se distinga pela nota da venerabilidade.

As nocivas influências da “heresia branca” e do otimismo

A sacralidade é a mais alta expressão da venerabilidade. Isto vale para formar o nosso espírito contra duas espécies de influências que recebemos: primeiro, a “heresia branca”(2) expressa em certas imagens de Santos que olham com uma carinha sentimental e despreocupada. Não deveriam ser assim. As coisas santas precisam ser veneráveis, incutir respeito. É necessário defender Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, a Santa Igreja Católica contra isto.

Em segundo lugar, contra outra forma de influência que reputo também muito inconveniente e nociva: essa espécie de otimismo cândido e engraçado de nossos dias, que não é senão uma espécie de bobeira oficializada. Pessoas corroídas de preocupação, que trabalharam o dia inteiro como mouros, de olho afiado para pegar o que puderam, e que, entretanto, chegando a hora do jantar, à noite, estão todas com umas carinhas de anjinhos inocentes e idiotas, não Anjos verdadeiros, mas uma caricatura.

É contra essas influências que destaco o título de São Beda, o Venerável. Como eu gostaria de o ter conhecido, como me atrai imaginar seu porte que é mais de um monumento do que de gente; quando um homem adquire tal ar, fica parecido com uma catedral! Então, vendo São Beda, o Venerável, ajoelhar-me diante dele, oscular seus pés e implorar que ele me obtivesse de Nossa Senhora algo dessa venerabilidade, sem a qual não se tem o espírito católico.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1970)

Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

 

1) Presbítero e Doutor da Igreja. Passou toda a sua vida no mosteiro de Wearmouth, na Nortúmbria, Inglaterra. Dedicou-se com fervor a meditar e expor as Sagradas Escrituras (†735).

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.