Princípios da unidade

Na segunda parte da conferência, cujo início transcrevemos no último número, Dr. Plinio continua a tratar de um princípio da escolástica, segundo o qual a beleza consiste na unidade posta na variedade. É fundamental para se compreender por que Deus imprimiu no universo um caráter hierárquico, com graus diversos de perfeição. Após haver estudado as leis da variedade, Dr. Plinio examina as da unidade.

 

A unidade supõe uma ausência de interrupção que se pode verificar de duas maneiras: pela continuidade ou pela coesão.

A continuidade é a simples ausência de vazios, para que, no ser uno, não haja hiatos.

Muito mais profunda é a unidade que se verifica pela coesão: neste caso há uma articulação interna entre os elementos, de modo que eles ficam presos uns aos outros por vínculos íntimos e poderosos.

Entre as classes sociais, numa civilização cristã, deve haver continuidade e coesão. Embora numerosas, e profundamente diferentes entre si, o todo que elas constituem é contínuo e coeso. É contínuo porque umas se explicam pelas outras, auxiliam-se mutuamente e formam um conjunto sem os hiatos que caracterizam a sociedade revolucionária. E é coeso porque as classes, embora distintas, estimam-se, defendem-se umas às outras, não se consideram estranhas ou inimigas entre si, mas se amam com o verdadeiro espírito de Nosso Senhor, que foi Príncipe e, ao mesmo tempo, artesão. Como tudo isso é diferente da luta de classes do mundo moderno!

Transição harmônica, como as cores de um arco-íris

Ao tratarmos das leis da variedade e ao examinarmos a lei da gradação, vimos que deve haver hierarquia na Criação.

Estudando agora as leis da unidade, veremos que essa hierarquia, para ser autêntica, deve compor-se de graus que se sobreponham uns aos outros harmonicamente, e não de qualquer modo.

Na hierarquia, a variedade se assegura pela multiplicidade dos graus intermediários, ao passo que a unidade se assegura pela suavidade da transição entre esses graus.

É o que acontece com o arco-íris: as cores que o compõem se ordenam em uma transição suave. Vemos nisto a sabedoria de Deus, que criou o Universo com uma magnífica unidade, expressão de uma grande força, e ao mesmo tempo com uma magnifica variedade, expressão de um grande poder.

Pensemos na coroação de um Imperador do Sacro Império Romano Alemão. No momento em que o Imperador recebia a coroa, bimbalhavam os sinos da capital do Império. Logo repicavam os sinos das cidades mais próximas; a seguir, os das cidades mais longínquas; e por fim, os de todas as Igrejas da Alemanha. Durante dias e dias os sinos repicavam, anunciando, de campanário em campanário, que o Imperador havia sido coroado.

Consideremos esse tocar de sinos que se estendia por todas as Alemanhas: a Alemanha da Baviera, a da Saxônia, a de Dresden, a de todos os tipos de alemães, desde o tipicamente militar, até o burguês bonachão. Essa amplitude de repercussões da notícia da coroação do Imperador por vários mundos dá a impressão de algo forte e suave ao mesmo tempo. Que poder imenso é o do Imperador! Mas, ao mesmo tempo, quanta doçura há nesse Império! Como a força e a suavidade nele coexistem harmonicamente!

São bem esses os valores que devemos amar do fundo de nossa alma, pois se relacionam com uma perfeição a perfeição da hierarquia em que a variedade e a unidade se encontram num grau excelente.

Proporção: tudo feito com número, peso e medida

A Sagrada Escritura nos diz que todas as coisas foram criadas por Deus com número, peso e medida. Vemos, com efeito, que em todos os corpos, a natureza, o movimento e a massa são proporcionais.

Temos um expressivo exemplo dessa proporção na Igreja Católica. Sendo uma organização imensa, riquíssima e belíssima, Ela se personifica, por excelência, na pessoa do Papa. A pompa e a dignidade papais, a beleza de sua corte, enchem a todos de admiração. Mas, ao mesmo tempo, achamos tocante que a Igreja Católica também se personifique num pequeno cura de aldeia. Essa personificação é a mais proporcionada aos camponeses, está bem ao nível das suas almas, não os intimida nem os constrange. A representação do Sacerdócio de Nosso Senhor tem, nesses curas de aldeia, como que uma condição pequena, proporcionada àquela gente também pequena.

Imaginemos agora um estadista coberto de glórias, que chega à velhice, e suponhamos que a Igreja, para cuidar de sua alma, delegue um monsenhor. É um fato que, aliás, tem se dado na História. Contemplemos o velho estadista e o monsenhor conversando de forma amena e respeitosa. Não agiu bem a Igreja Católica, reconhecendo e honrando a dignidade desse homem? É que a Igreja procura proporcionar a sua hierarquia à hierarquia civil. Seu amor é semelhante ao materno, pois uma mãe sabe dosar como ninguém a energia e a suavidade. Assim faz a Igreja.

A proporção existia em grau excelente na hierarquia feudal. A nação, que se personificava no rei, também se personificava no pequeno senhor feudal, colocado junto ao povinho miúdo. Ele, o menor grau da aristocracia, iluminava com a transcendentalidade da nobreza o último grau da escala social.

Até com relação às bebidas podemos contemplar a proporção. Ao lado de vinhos do mais alto requinte, existem boas bebidas populares, feitas exatamente para o pequeno povo. Essa é a proporcionalidade das coisas boas. Na casa do rei, há móveis dourados; na do camponês, os há de carvalho trabalhado, como em algumas regiões da Europa. Na casa do rei, há ouro e prata; na do camponês, objetos toscos, mas que, por serem dignos e artísticos, às vezes valem o ouro e a prata.

Esta é a proporção bela, leve, suave, razoável, que devemos, amar com todas as nossas forças.

Simetria: não pode haver o risco de se perder a unidade

Imaginemos um edifício com uma fachada tão extensa que corra o risco de perder a unidade. Se, entretanto, ele tiver nos dois extremos duas torres iguais, sua unidade estará, pela simetria, reconstituída.

Na História do século XVI vamos encontrar uma cena que ilustra bem isso. Francisco I, rei da França, e Henrique VIII que ainda não se tinha feito protestante decidiram encontrar-se em Cambrai, no lugar que depois foi chamado “camp du drap d’or”, tal o luxo, tal a magnificência de que se revestiu o fato. Basta dizer que, no campo de Francisco I, as tendas eram douradas. O encontro entre os reis realizou-se em uma ponte. Imaginemos a beleza do encontro dos dois soberanos, e das duas cortes que chegavam. Na ponte inteiramente coberta de tapetes, um rei se inclina diante do outro rei, cumprimentando-se assim mutuamente, enquanto as trombetas soam. Quando os franceses querem descrever a atitude dominadora de um homem, dizem que ele tem o ar de um rei que recebe outro rei “l’air d’un roi recevant un roi”. Em que consiste a beleza de um soberano que recebe outro rei? É exatamente a beleza da simetria, em que dois princípios iguais se contemplam um ao outro e, de certo modo, se multiplicam um pelo outro.

Na cristandade, a existência de muitos reis iguais em força, glória e poder, era exatamente uma expressão do princípio da simetria.

Tudo se ordena em torno de um elemento supremo

A quinta lei da unidade é a da monarquia. Ela é indispensável para a beleza da vida humana. Todas as coisas, para serem reduzidas à sua unidade, devem tender a se ordenar em torno de um elemento supremo, que será um símbolo, uma como que personificação do conjunto. E é esta personificação que dá perfeição à unidade

A monarquia não é, como poderia talvez parecer, o oposto da hierarquia, mas, pelo contrário, é a sua consumação. Nela, a beleza de todas as diversas perspectivas como que se concentra.

Ao lado da lei da monarquia, há a lei da sociedade. Ela consiste em que as coisas, postas juntas, se completam e se embelezam mutuamente.

Analisamos embora de forma muito sucinta as leis da estética do Universo. Trataremos de mais um ponto, muito relacionado com este assunto.

Atração pelo que melhor espelha a perfeição de Deus

Tomemos as palavras: decente, excelente, nobre, majestoso, sagrado. Elas constituem uma gradação ascendente.

De um determinado objeto, pode-se dizer primeiro, que ele é decente, o que significa que não tem nenhuma nódoa de vergonha. Além de decente, podemos dizer que ele é ótimo, excelente. Excelente já é mais que decente.

Poder-se-ia, prosseguindo, apôr o adjetivo nobre, que é especificamente mais do que excelente e decente. Mais do que nobre, poderemos dizer que o objeto é majestoso, adjetivo que, não é, entretanto, especificamente diferente de nobre, pois dele difere somente em grau. Por fim, poderemos acrescentar que o objeto é sagrado, quando contém valores que superam a majestade humana.

Nessa gradação de valores, um espírito muito religioso será atraído por aquilo que melhor espelha a perfeição de Deus: o majestoso e o sagrado. Ele procurará, em tudo, esses supremos valores, e terá sede deles.

Tendo esse espírito, o homem desejará uma sociedade em que, ao lado de muitas coisas decentes, haja várias excelentes, nobres, majestosas, e sagradas.

E então esse homem criará naturalmente uma sociedade que realiza, dentro dessa ordem quase fluida de coisas, uma admirável variedade e uma perfeita unidade

Compreendemos, pois, que quando uma pessoa conhece e ama os princípios da variedade e da unidade do Universo, e quando essa pessoa é católica pois só o católico já tem os pressupostos para compreender inteiramente esses princípios , ela é de fato profundamente religiosa, no sentido mais verdadeiro da palavra.

Este quadro que descrevemos da estética do Universo, com suas leis, os reflexos divinos colocados pelo Criador em todas as coisas, em última análise, tudo o que os católicos fervorosos amam, tudo aquilo de que têm sede, tudo isto a Revolução quer destruir, eliminar, apagar.

E é nisso que consiste a questão religiosa, que não se restringe ao problema do laicismo. É uma questão que não se resolve fazendo uma concordata e declarando que a Igreja Católica é a oficial no país. Está em cena toda uma concepção da vida, todo um modo de ser do pensamento humano.

Como católicos, pois, devemos amar profundamente a face de Deus refletida na ordem verdadeira das coisas. Mas, para que nosso amor chegue até onde deve ir, aprendamos a aplicar essas leis da variedade e da unidade.

Assim, sempre que algo nos causar admiração e nos deleitar, saibamos perceber qual das leis da estética do Universo está aí aplicada. Agindo desse modo, faremos algo imensamente agradável a Nossa Senhora.

 

Revista Dr Plinio Junho 2002