A perfeição — no homem, nas nações
De uma canção de gesta medieval — “La Chanson de Roland” — Dr. Plinio colhe vívidos exemplos para nos mostrar como devemos amar as virtudes teologais e cardeais, admirando-as tal como existiram e existem nos indivíduos e nos povos.
Em nossa trajetória na vida espiritual, amaríamos mais a perfeição e para ela tenderíamos, se não tivéssemos uma ideia incompleta a seu respeito.
Excelências de alma, refletindo-se no corpo
A perfeição é uma ordem de coisas íntegra. Não podemos dizer que algo imperfeito seja íntegro. Perfeição e integridade são termos correlatos. Entretanto, a palavra “perfeição” torna-se vazia — diz-se em latim um “flatus vocis”, um som da voz — e não desperta nossa vontade de atingi-la, se não soubermos, antes de tudo, responder à pergunta: perfeição do quê?
Da alma humana, bem entendido. E, portanto, da perfeição do homem.
Trata-se da excelência do espírito, que estende sua influência também ao corpo. Embora não o leve à mesma perfeição, posto estar ele sujeito a mil misérias, marca-o com uma nota especial, inconfundível, de maneira que, quando o físico é belo, a riqueza moral transparece nele de um modo magnífico, fazendo-nos exclamar: “Que ser estupendo!”
Já quando o corpo é menos favorecido, apresentando lacunas e defeitos, ainda assim a perfeição moral o assina-la tão excelentemente, que somos levados a comentar: “Oh alma!”
Análise teórica
Para melhor compreendermos como devemos amar a perfeição, apresentarei primeiro a formulação teórica, seguida de alguns exemplos concretos.
A perfeição moral é a santidade. E santidade é a prática em grau heroico das três virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade —, das quatro cardeais e das que delas decorrem. As virtudes teologais nos orientam para o Céu; as cardeais nos indicam, tendo em vista a bem-aventurança eterna, como deve ser nossa atitude face às coisas da Terra.
Os dez Mandamentos são as virtudes teologais e cardeais aplicadas a cada ramo concreto da ação humana, que constituem o nosso edifício moral e espiritual.
Tanto me compraz conceber e admirar no plano teórico essas verdades de ordem moral, que eu gostaria, se fosse desígnio da Providência, de dar minha vida por tais princípios.
Mas, se não houvesse outro meio de perceber a excelência dessas virtudes a não ser no plano da teoria, eu ficaria entristecido. Não objetante, mas contristado. Porque minha alma quereria considerar essas virtudes também de outra maneira. Seria mais ou menos como se, por um binóculo de longo alcance, capaz de transpor as eras históricas passadas, eu visse Roland tocando olifante em Roncesvalles. Sem dúvida, desejaria contemplá-lo nessa atitude. Porém, possuindo eu uma faculdade cognoscitiva que não é apenas visual, mas também auditiva, quereria outrossim ouvir a música que ele tira do instrumento. Por quê? Porque o binóculo teria posto ao alcance dos meus olhos um homem usando seu olifante, dando-me a conhecer alguns aspectos da sua alma, pelo modo como ele toca. Ora, a música executada reflete outros lados dessa alma, e não a ouvindo, fico privado de melhor apreciar o espírito de Roland.
Analogamente, minha alma é capaz de perceber a virtude de várias maneiras, pelo que, após ter discernido esta pelo binóculo inconfundível da doutrina, ela também quereria contemplá-la por outros lados. Do contrário, alcançaria o conceito de perfeição, mas sem compreendê-lo inteiramente. E diria: “Não vi de modo cabal. Faltou algo a meu amor”.
Carlos Magno: exemplo de busca da perfeição
Para ilustrar essa doutrina, e mostrar como se pode discernir a Fé, a Esperança e a Caridade, bem como as demais virtudes em determinada alma, tomemos um exemplo da época medieval.
Acima evocamos a figura do valoroso Roland. Tão superior a este foi o seu Imperador, o homem colocado no píncaro onde sopram todos os ventos da História e todas as grandezas se reúnem: Carlos Magno. Herói, lançado na vida pública desde a juventude, ainda hoje exerce uma ação diretiva profunda nos acontecimentos históricos.
Na gloriosa existência do grande Carlos houve um episódio que a marcaria de modo doloroso e indelével. Tal fato inspirou a célebre Chanson de Roland, talvez a mais bonita canção de gesta francesa.
Após sagrar-se vitorioso em duros confrontos na Espanha, o Imperador comandava a retirada de seu exército, tendo confiado a retaguarda aos cuidados de seus Pares, capitaneados por Roland e Olivier. Ora, os inimigos, conluiados com o traidor Ganelon, vieram ao encalço dos franceses, armando-lhes uma emboscada no desfiladeiro de Roncesvalles.
Olivier era considerado o homem sage (sábio), e Roland, o herói, o “preux” (capaz de fazer proezas), embora houvesse um entrelaçar dessas virtudes em ambos. Quando os dois perceberam a superioridade numérica do adversário que os atacava, Olivier pergunta a Roland:
“Sire, mon frère” (eles se tratavam de “senhor” e também de “irmão”), não seria o caso de soar o olifante para chamar Carlos?
O sentido da questão posta por Olivier era: “Afinal de contas, devemos pedir ajuda ao Imperador”.
O “preux” Roland respondeu:
Não. Todos os barões da doce França se ririam de nós, se mandássemos vir Carlos.
Diz o sage:
Mas o risco que enfrentamos é grande!
Sim, mas podemos desdourar o nome da cavalaria francesa, e por causa disso não o chamo.
Como Roland era o chefe, assim ficou decidido. Quando as tropas inimigas aparecem, eram elas tão numerosos que não havia mais saída. Então, Olivier, sem nenhuma palavra de recriminação ao companheiro de armas, com muito afeto lhe diz:
“Mon doux frère” (meu caro irmão), lembre-se que foi porquê…
Queria com isso significar que o resultado desastroso do combate se devia a não terem contado com o socorro do Imperador.
De fato, os franceses foram exterminados. A flor do exército de Carlos Magno ali pereceu, inclusive o Arcebispo Turpin, batalhador dotado de uma “force de frappe” (força de ataque) tão extraordinária que deixava Roland e Olivier pasmos.
Carlos e o restante dos seus cavaleiros regressam a Roncesvalles e chegam, não propriamente ao campo de batalha, mas a uma campina próxima. Diz a Chanson que o Imperador estava “retorcendo a barba de rancor e de tristeza, porque Roland e toda a retaguarda haviam morrido”. Ou seja, apesar de o grande monarca querer com entranhado amor a todos os seus guerreiros, para ele era como se apenas Roland tivesse perecido, porque este resumia toda a retaguarda.
Eles apeiam dos cavalos, tiram as armaduras e deixam tudo espalhado pelo chão. Carlos, porém, monta novamente e se distancia, sem dizer palavra. Percebendo para onde ele se dirige, todos o seguem. O Imperador vai ao campo de batalha a fim de reconhecer os restos de Roland, de Olivier e dos outros dez Pares. Vai chorar sobre eles e a grande parte do exército da França que ali perderam a vida em renhido confronto.
A Chanson de Roland é muito discreta, e não entra em detalhes sobre o estado psicológico de Carlos, após esse duro revés. Mas, podemos percebê-lo sem maior dificuldade. Até então, os Pares prestavam reverente e solícito serviço ao seu Imperador, ajudando-o em tudo no mister das armas. Agora, para lhe aprestar o cavalo, segurar-lhe o estribo, apresentar-lhe as luvas e o ajudar a montar, havia guerreiros de segunda ordem, soldados de pequena nobreza, ou mesmo um duque ou outro súdito de título importante, que não tinham dado provas de valor como o fizeram aqueles grandes Pares.
O Imperador recebe esses serviços e, à frente de uma tropa de menor categoria, retoma sua vida de batalhas, como se os doze Pares ainda estivessem com ele…
Homem maduro, não conquistara todavia tudo o que tinha a dominar. A flor do seu exército, o melhor instrumento de sua vitória morreu sem ele ter terminado a sua obra. Oh! tragédia!
Fé, Esperança e Caridade num Carlos que não desanima
A Chanson insinua o problema. Quando combatiam os Pares, ela narra suas proezas. Depois que estes desa- pareceram, ela canta o que Carlos faz diretamente. Ele substituiu seus valorosos guerreiros e escreveu todo o futuro da França, mesmo abalado pelo golpe terrível de Roncesvalles.
Pela coragem um pouco imprudente de Roland — este deveria ter ouvido Olivier — e por todas as outras circunstâncias, a obra de Carlos na Espanha estava arrasada. Coisa amarga: o par mais fiel e amigo, sobrinho dele, cometeu a imprudência que causou a derrota de seu exér
ele, suscitando uma outra França atrás de si, que prosseguiu a luta.
Durante o auge da sua epopeia, nalgum momento em que ele estivesse sentindo uma falta como que irreparável dos seus valentes, Carlos teria se perguntado: “Essa gente que me segue, dará origem a novos Pares? Há uma nova França nesses soldados que agora me obedecem, ou são apenas um resto que me acompanha? Estarei combatendo à toa?”
É uma questão que não pode ter deixado de saltar ao espírito dele — e quantas vezes! — durante a batalha.
Nisso tudo há um Carlos que não desanima, imbuído de Fé, Esperança, Caridade, e que sabe serem necessários tos de abnegação como esses. Não há glória no mundo que os pague. Pois, considerando apenas o aspecto natural, ele teria vontade de dizer: “Não quero saber de mais nada, está tudo liquidado, eu vou para uma ilha no Mediterrâneo!”
Mas, há algo que pague: a Fé. Porque se Deus me criou, Jesus Cristo me remiu e Nossa Senhora chorou por mim ao pé da Cruz, minha dedicação deve ir até o fim. Pela Igreja Católica farei qualquer coisa.
Temos, então, alguns aspectos da vida de Carlos, o grandioso. E assim, com exemplos concretos, podemos melhor compreender a Fé, a Esperança e a Caridade, que modelam as quatro virtudes cardeais e todas as outras.
O Reino de Maria
Em cada época da História, o Espírito Santo, atendendo pedido da Santíssima Virgem, concede aos homens a graça de um equilíbrio de virtudes com determinada nota, correspondendo, suponho eu, a algo que brilha especialmente no Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Isto constitui uma espécie de beleza própria que marca as formas de arte, de beleza, de civilização, de gosto, de força, de sabedoria, de êxito, de cada era histórica.
Analogicamente, como as pessoas, as nações têm virtudes, mentalidades, etc., e podem se tornar santas durante cem, duzentos anos ou mais, e engendrar uma biografia venerável que se chama História. É em torno do ponto ápice da alma de cada nação, de sua luz primordial(1) brilhando até onde deve, que todas as ordenações e pulcritudes dela têm seu desdobramento completo.
Daí nasce a pergunta: para se prever como será aquela civilização arquetípica prenunciada por São Luís Grignion — o Reino de Maria —, tem-se que indagar como, em réplica da Revolução, virá a afirmação da Contra-Revolução que deixará pasmos a muitos.
O que Nossa Senhora excogitará e o Divino Espírito Santo concederá para acontecer isso? Como será esse “pulchrum” central, o “lumen Mariae”, o mais belo do “lumen Christi” que iluminará aquele Reino? Deverá ser algo em torno dessa verdade: a formosura de alma é o fundamento da beleza de toda era histórica.
Concluo, fazendo notar como essas considerações tornam a virtude muito bonita, deleitável, e desperta em nós a vontade de conviver com ela, de possuí-la. Dessa vontade vem o desejo da perfeição. E quem para esta tende seriamente, procura estar junto aos que a cultivam. Aquele que procura a companhia dos imperfeitos, porque é divertido, etc., está errado e deve retificar o caminho dos seus passos.
Escrita no século XI, enaltece o heroísmo e a honra dos doze Pares do Imperador Carlos — entre os quais se destacava Roland —, mortos na batalha de Roncesvalles, em 15 de agosto de 778.
Revista Dr Plinio 74 (Abril de 2004)
1) Sobre o conceito pliniano de luz primordial, ver “Dr. Plinio” nº 54, p. 4.