Nossa Senhora, o céu e o mar: reflexos da beleza divina
E se fala a respeito da sabedoria do Criador, mostra-se quase sempre como as coisas estão concatenadas de tal forma que elas não se destroem, nem colidem umas com as outras, mas que coexistem com harmonia e mutuamente se apoiam. É uma visão funcional do universo inteiramente verdadeira, por certo, mas que mostra apenas um aspecto, que nossa época mecanicista e ultra técnica mais facilmente compreende.
Mas há um outro aspecto do Universo relacionado com Deus enquanto causa exemplar, enquanto Ser incriado e infinitamente belo, que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que Ele criou. De maneira tal que não há nenhum ser que, a um título ou outro, não seja um reflexo da beleza incriada de Deus. […]
O mar: exemplo do princípio da unidade na variedade
Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no Universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade.
Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e a uma definição fria desses princípios, seria, talvez, mais interessante que os consideremos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos.
Comecemos pelo mar. Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre. Assim, numa orla do mar, em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida, que se estende diante de nós até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, e tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades, para formar a grande e única imensidade do mar, que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da terra.
Mas, ao mesmo tempo que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.
Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranqüilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender-se nosso espírito, como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis, para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder que existe no mais profundo dele, e que não se suspeitava nem um pouco nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.
Também há variedades estéticas no mar. Às vezes é ele tão claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros panoramas ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos fechados em que, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.
O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo que parece com a prosa de um velho amigo, que já muitas vezes se ouviu. Mas, pouco depois, ele nos fala com o bramido dominador de um rei, que quer impor a sua vontade a todos os elementos.
O modo por que ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante, outras vezes caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado, que se diria quase que ele se contenta em ver a terra sem tocá-la.
Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade.
Caracteres específicos da variedade harmônica
Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.
Tais caracteres são: primeiro, essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Essa variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não soubesse ser, por exemplo, tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e do extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.
Essa variedade de oposição deve comportar uma certa simetria. Quer dizer, é necessário que, quando uma coisa tem um caráter levado a um extremo, no lado oposto ela chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão furioso em umas horas quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.
Mas, ao mesmo tempo, as variedade harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Estas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará obscuro? Não o sabemos dizer, porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas, que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.
Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso; mas quando se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos coexistentes no mesmo meio termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.
Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo ao outro, o mar não salta, mas passa sempre, com rapidez maior ou menor, por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Quando, porém, tal sucessão de matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo, e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis, que até excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.
Na abóbada celeste, a variedade do progresso
Há, por outro lado, uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas que é muito relevante no céu: a variedade do progresso.
Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite posta, de maneira tal que ele oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vai ganhando em colorido, em força e em majestade até chegar à gloriosa plenitude do meio dia. Em seguida, ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora.
Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências, que vão dos primórdios ao apogeu e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.
Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas da variedade em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do sol no firmamento. Em função dele, no céu todas as variedades não são senão fundos de quadro, que cooperam para o realçar de mil modos em toda a sua beleza.
Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente debaixo dos nossos olhos e que são esplêndidas semelhanças da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.
A beleza da santidade na mais alta das criaturas: Nossa Senhora
Mas sabemos pela doutrina católica que se a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito, assim também, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também imagens do homem. E que o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus, Nosso Senhor.
Desta maneira, essas regras de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade, no homem, sim, e, pois, na mais alta de todas as meras criaturas: em nossa Senhora, que, com tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.
Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata. […] [Ela reúne] numa perfeita harmonia contrastes aparentemente irreconciliáveis: é a Virgem Mãe, chamada a Virgem das Virgens, que poderia, muito lícita e validamente, também ser chamada a Mãe das Mães. Ninguém mais plenamente Mãe, Mãe por excelência, do que Ela. Ninguém mais plenamente Virgem, Virgem por excelência, do que Ela também.
Em Nossa Senhora se encontra, outrossim, a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se nota bem no fato de que, sendo una, Ela se apresenta a nós na diversidade admirável das suas invocações. Ela é a Nossa Senhora da Paz, é a Nossa Senhora dos Prazeres, a Saúde dos enfermos, mas é também Nossa Senhora das Dores, Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo Auxílio dos cristãos, mas Refúgio dos pecadores; Ela é glorificada pela sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar nas aparições comentam a sua soberana majestade. Ela é Nossa Senhora que se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata” (“como um exército em ordem de batalha”), mas, ao mesmo tempo, Ela é “Mater clementiae et misericordiae” (Mãe de clemência e de misericórdia).
Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes, diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e, com todas as suas forças, deve procurar amar e imitar.
Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de “O Mensageiro Carmelitano”, de 15/5/59)