No passado perene, o futuro…
Tomando parte na Liga Hanseática, a cidade de Bremen exerceu um importante papel histórico. Porém, foi a beleza de sua arquitetura que a fez atravessar os séculos.
No decorrer de tantos séculos de História, a cultura europeia revelou que possuía de forma incomum o gosto pelo maravilhoso, no sentido mais profundo do termo: almejava ela, coisas de grande valor e categoria, capazes de produzir no espírito humano uma sensação de enlevo e entusiasmo tão intensa que pareciam transcender a capacidade humana de maravilhamento. E que, ademais, por sua nobreza e distinção, preparavam, em última análise, os espíritos para que tivessem apetência das coisas divinas.
Esse anseio pelo belo era, portanto, um instrumento natural, utilizado para dirigir e dispôr as almas a fim de receberem o auxílio sobrenatural da graça de Deus, o qual reservara grandes dons para a vida futura, àqueles que Lhe foram fiéis na presente.
Não obstante, é possível verificar entre os povos outra atitude de alma diversa desta, na qual o maravilhoso não ocupa praticamente lugar algum. Tal como alguém que, vivendo diante de magníficos panoramas marítimos, edificasse sua casa de costas para o mar, não apreciando tão evocativo ambiente.
Como corretivo para tal defeito, nada há melhor do que exercitar a apetência pelo sublime. Ele pode ser facilmente encontrado nas construções, nos templos e até mesmo nas praças…
Um exemplo característico é a cidade de Bremen, Alemanha: uma gloriosa cidade medieval, à espera de quem vá contemplá-la.
Importante papel histórico
Bremen tomara parte na Liga Hanseática(1), que era constituída principalmente por Hamburg, Lübeck e Dantzig. Tais cidades adotaram uma forma de governo pela qual a população elegia os representantes para constituírem a câmara municipal. Porém, na realidade, o governo acabava por tocar a uma aristocracia constituída por famílias que se dedicavam ao comercio e à indústria.
Tal era a pujança da famosa Liga Hanseática, que esta chegou a possuir marinha própria, auxiliando até mesmo aos imperadores do Sacro Império Romano Alemão, e sendo durante certo tempo uma das maiores potências da Europa.
Dentre as capitais desta Liga estava Bremen. Como essas cidades eram governadas pelas prefeituras, estas se tornavam os símbolos de autonomia da cidade, sendo ornamentadas com dignidade e beleza. Por esta razão, tanto na Alemanha como também nos Países Baixos, lugares em que o municipalismo muito se desenvolvera, encontram-se paços municipais que parecem ser verdadeiros palácios régios.
Irregular simetria?
Nesta pitoresca cidade há uma sede municipal chamada “Rathaus”, ou Casa do Conselho. Esta se encontra numa praça que tem ao fundo a Catedral da cidade. A Catedral forma um conjunto com o prédio e com as dependências e os edifícios análogos que se escoram graciosamente em suas paredes.
De forma irregular, que convém, entretanto, à simetria com a disposição dos edifícios, a praça, provavelmente mais recente, foi idealizada de modo judicioso e muito adequado, com um toque de leveza, devido ao mosaico de pedras que encontra-se no centro.
Caso fosse possível fazer em alguma parte desta praça uma fonte de água elegante, leve e bonita, até mesmo com as técnicas modernas de iluminação com coloridos diversos — como no “Bois de Boulogne”, em que há no fundo das fontes, luzes de magníficas cores, causando a impressão de pedras preciosas líquidas; são topázios, ametistas, rubis que estão continuamente elevando-se e caindo —, acrescentar-se-ia um toque ainda mais belo ao ambiente.
Colocada em lugar um tanto assimétrico, está uma torre antiga, condizente com os demais monumentos, que era provavelmente uma fonte. O urbanismo moderno infelizmente não utiliza fontes de água, o que poderia atenuar, em parte, a irremediável feiura das metrópoles modernas. Todo o ambiente é antigo e medieval, ou ao menos traz as reminiscências desta época, o que se faz notar pelas figuras que adornam os edifícios, a Catedral e até mesmo as ruas.
Um convite a elevar-se ou… a flutuar
Em certos períodos da História, o telhado foi muito utilizado pela arquitetura europeia como elemento de decoração. Como na Catedral de Santo Estevão em Viena, e em outros prédios, utilizavam-se diversas cores de ardósia formando belos desenhos. O cobre era também empregado na decoração dos telhados, pois com o passar do tempo ele azinhavra, adquirindo um lindo tom verde-esmeralda, assemelhando-se a uma grande pedra preciosa. O tipo perfeito de telhado não deve pesar, e por outro lado dar a ideia de algo que eleva e convida para subir. Tanto a cor quanto a forma pontiaguda comunicam ao edifício alegria e leveza, pois há um contínuo convite para elevar-se.
Como se tratava de edifícios públicos, havia reuniões e concentrações populares nas quais era preciso que o povo pudesse reunir-se no edifício, abrigado da chuva. Por essa razão a parte térrea dos prédios é composta de uma série de ogivas que dão para uma galeria aberta, onde as pessoas podiam inclusive passear.
A totalidade das construções dessa praça causa uma impressão encantadora de leveza, pelas formas pontiagudas e esguias que quase não tocam no solo, com um aspecto de conto de fadas. Para essa leveza concorre também a diferença de cores: verde-esmeralda, vermelho claro entremeado com o bege que se prolonga pelas pedras. Um jogo de cores tão delicado, tão leve, que se tem a impressão de que, colocados sobre uma jangada, esses edifícios passariam para as ondas a flutuar e não iriam para o fundo — aliás, seriam lindíssimos palácios flutuantes. O imponderável que deflui do prédio é de uma grande nave flutuando nesse mar de pedra que é a praça. Este é o Paço Municipal de Bremen.
Enquanto esse prédio sorri, a Catedral, pelo contrário, transmite uma atmosfera de majestade e de força. Aspecto majestoso, forte e sério que relembra uma das facetas da Santa Igreja, que é sua divina severidade. Quando bem construída, toda igreja espelha um aspecto da Religião Católica.
O efeito produzido pelas lindas e imensas torres da Catedral é como alguém que afirmasse: “Isso mesmo! Não só afirmo e finco o pé no chão, mas levanto a cabeça, e com toda a altura de minha estatura te olho, ó transeunte, para te dizer que a Igreja nunca muda, que a Igreja não passa, que Ela é eterna, e que tu tens que olhar com respeito para a severidade dos princípios que Ela emite”.
O tempo passou inclemente, mas as pedras aguentaram altaneiras os percalços e as intempéries, produzindo a impressão de consistência pelo embate de mil tempestades pelas quais tiveram de passar, o que lhes dá um aspecto de seriedade e de sabedoria. Isso produz um choque ou uma discrepância harmônica com o restante dos edifícios que compõem a praça. É o maravilhoso da severidade, do combativo, do altaneiro, ao lado do maravilhoso, do delicado, do gracioso, do harmonioso, do flutuante. São duas formas diversas do maravilhoso que, juntas, constituem pelo seu próprio contraste uma só única e harmoniosa maravilha. Essa é uma das mil maravilhas da maravilhosa Europa antiga…
A alma medieval era profundamente embebida pelo sobrenatural, ao ponto de realizar, mesmo sem a intenção expressa, maravilhas como esta. Era uma sabedoria esparsa por toda a Idade Média, e um patrimônio comum da Cristandade, que levava as pessoas a agirem bem e fazerem as coisas retamente, muitas vezes até sem saber bem o porquê; era o dom de sabedoria entranhado nas almas. Nesse estado de alma, era-lhes possível encontrar todos os tesouros da sabedoria. Pois os sentimentos mais profundos do homem apresentam-se muitas vezes da seguinte forma: para uma mãe que sabe tratar de seus filhos, não é necessário estudar Pedagogia para ser uma excelente mãe. Do fundo de seu amor materno, instintivamente, ela retira os recursos para ser uma boa mãe. É melhor do que se ela tivesse estudado.
A arte perfeita na era da perfeição!
As técnicas atuais descreveriam esse edifício de modo inteiramente oposto ao que foi aqui realizado. Entretanto, a técnica pura não move e, pelo contrário, tende a matar o espírito. Talvez dissessem: “Rathaus” da cidade de Bremen, século tal; material empregado: pedras especiais que se encontram em tal montanha, de onde lhe vem, por uma reação química, a consistência e a durabilidade de seu vermelho. Foram trabalhadas em estilo românico e renascentista, sob as ordens de tal mestre no século tal. Existem arcadas que medem tanto por tanto. Neste edifício passaram-se os seguintes fatos históricos: foi aí proclamada a famosa insurreição de Bremen contra seu governador; também aí soou pela primeira vez o alarme pela penetração das tropas napoleônicas em Bremen, em tal ocasião; duramente bombardeada durante a Primeira Guerra Mundial, serviu de Quartel-General aos aliados.
A explicação apresentada desta forma causa-nos a sensação da descrição de um cadáver reduzido ao esqueleto, onde não restou nada mais que a ossatura. Um jovem que fosse a um museu e lá ouvisse uma explicação como esta, dificilmente sairia entretido.
De outra forma, quando são realçados os aspectos sublimes e elevados desse ambiente, dos costumes aí vividos e da civilização que edificou este local, tudo parece tomar novo vigor, produzindo a sensação de perenidade. Pois se é verdade que Deus existe, não seria possível que uma coisa como esta estivesse definitivamente morta. Ele não pode permitir que algo assim desapareça, e que nunca mais algo de análogo venha a brilhar como um valor que oriente os homens. Se isso acontecesse, certamente o mundo acabaria, porque a glória de Deus não poderia permitir que haja novos séculos e novas civilizações construídas sobre o conspurcado.
A certeza de que virá algo imensamente superior e mais belo do que foi realizado no passado, enche-nos a alma, robustecendo nossa esperança na vinda de uma era onde Nossa Senhora reinará plenamente: o Reino de Maria. E nisso consiste a perspectiva última do maravilhoso: ver no passado o perene; no perene, o futuro.
Compete, portanto, aos filhos da luz, explicitar tudo aquilo que o medieval possuía implicitamente, pois esse é o requinte da perfeição. Explicitar para viver, mas também para dar maior coesão e consistência ao Reino de Maria, criando uma escola de pensamento que comunique uma intenção consciente e harmônica, porém não-racionalista, vinda do sentimento em sua boa espontaneidade, para a elaboração de um estilo artístico inédito.
Será a arte medieval? Será outro estilo de arte? Os românicos não podiam imaginar o gótico, e inesperadamente o gótico apareceu. Não se pode saber, mas não sendo o gótico, será algo mais gótico do que o próprio gótico. Pois o caminho foi encontrado, e desse caminho não se sairá mais. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/8/1967)
Revista Dr Plinio 146 (Maio de 2010)
1) Aliança de cidades mercantis que manteve o poder de comércio sobre quase todo o Norte da Europa e o Mar Báltico.