A grandeza da ordem do universo
Exemplificando com obras de arte de Velásquez e Van Dyck, e, no campo da História, com um detalhe de um fato ocorrido logo após a queda da Bastilha, Dr. Plinio mostra que, de um pormenor, pode-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações a respeito da ordem do universo.
O universo é incomensurável! Como abarcá-lo? A ordem dele é ainda mais incomensurável do que ele. Porque se é verdade que o universo ocupa tão grande espaço, em cada ponto incidem nele e entram em harmonia milhares de elementos de ordem.
Pormenores de alguns quadros artísticos…
A ordem não é senão a disposição das coisas para o seu fim e de acordo com a natureza que têm. Mas para essa disposição entram em cada coisa tantos elementos, e todos eles precisando entrar em ordem, que se poderia dizer facilmente que há milhões de ordens para uma só ordem do universo. Nesse sentido poder-se-ia afirmar que há milhões de ordenações para um só ser.
Por exemplo, considerem a mão humana: quanto se pode dizer a respeito da ordenação dos vários dedos com a mão, dos dedos entre si!
Eu vi uma vez um álbum de pintura que reproduzia um quadro de Velásquez, de uma das Infantas, e retratava a princesa com uma saia-balão e todos os demais adornos. Mas o álbum estampava ao lado a fotografia só da parte do quadro, que representava a mão. E era uma mão alva, muito fina, que simplesmente fazia uma coisa: carregava um lenço, um longo lenço, espantosamente longo para os nossos hábitos de hoje, feito de uma espécie de tule de seda ligeiramente rosado. A mão da princesa se apoiava sobre a armação de sua própria saia-balão, e ali segurava o lenço que pendia como que ao acaso. Velásquez, grandíssimo pintor, fez de um pormenor de sua obra um quadro.
Portanto, interessei-me em ir decompondo assim vários quadros, analisando tal pormenor e tal outro. Se se emoldurasse só aquilo, que expressão daria?
Vê-se que todo grande pintor em cada pormenor de suas pinturas faz um quadro. E que verdadeiramente um quadro de boa categoria é um mosaico de quadros.
Uma das obras de arte que mais expressam isso é a gravura que representa o Rei Carlos I da Inglaterra, de Van Dyck. A posição de sua mão, apoiando-se ligeiramente sobre um castão, e o cotovelo do braço esquerdo… Eu já disse que é um arquicotovelo. Não conheço um cotovelo mais nobremente pontudo, mais altaneiro e mais leve do que aquele. É uma coisa maravilhosa!
Um pintor soube tirar isto de um cotovelo a respeito do qual um médico, um anatomista, um fisiologista diria cem outras coisas. Por quê? Porque num elemento só do corpo de um homem — o qual é um elemento da humanidade, o qual é um elemento rex, o elemento rei de toda a ordem do universo —, só a respeito disso se poderia escrever uma biblioteca.
…e também da História
Têm-se também uma noção disso quando se analisam os pormenores da História. Estudamos a História nas suas linhas gerais e o significado dos fatos apresentados. Mas depois, quando começamos a analisar os grandes povos, os grandes acontecimentos históricos, percebemos que os pormenores interessam muito; cada um deles acaba constituindo como que uma história especial.
Certas ondas, ao arrebentarem na praia, como que se voltam para trás e caem. Assim também são os acontecimentos históricos. Eles parecem nascer de quem os produziu, mas, aprofundando em seu estudo, vemos que foram causados por aqueles que eles vitimaram.
De um pequeno pormenor, podem-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações da História, e que esclarecem mais um aspecto num universo de fatos como a queda da Bastilha, a qual é um ponto do universo de acontecimentos que é a Revolução Francesa; a qual, por sua vez, é um ponto desse universo de catástrofes que são as Três Revoluções1; e delas pode-se subir até à Redenção do gênero humano, à obra da Salvação.
Vê-se como a partir de um pequeno ponto as correlações se multiplicam e se avolumam. Às vezes, são detalhes ainda menores do que este que passo a narrar.
Reação de Luís XVI face à notícia de que a Bastilha fora tomada
Li em certa ocasião que, no dia da queda da Bastilha, o Palácio de Versailles passou as horas em completa tranquilidade. Ninguém mandou avisar o que estava acontecendo em Paris. Nota-se o relaxamento, o abandono do senso de conservação, do senso da autoridade. O Rei Luís XVI foi dormir na hora costumeira e, mais ou menos à meia-noite, chegaram os mensageiros a Versailles, procedentes de Paris, trazendo as notícias do que tinha sucedido durante o dia.
Só então perceberam a gravidade do ocorrido, e os Ministros se perguntaram se era o caso de acordar o Rei. E esbarraram diante de um problema de protocolo, de etiqueta. Não havia precedentes de alguém acordar o monarca durante a noite. Afinal, o Duque de La Rochefoucauld entrou no quarto do Rei. Tudo isso eu já conhecia, mas existe um pormenor que até então me havia passado despercebido.
Naquele tempo, determinadas pessoas dormiam em camas de aparato, as quais tinham quatro colunas e se corria uma cortina, que formava um pequeno quarto dentro do quarto de dormir.
Ele abriu toda a cortina, acordou o Rei e comunicou:
— Sire, estamos recebendo notícias de Paris, houve tal coisa assim etc.
E Luís XVI, estremunhando de sono, disse:
— C’est donc une révolte?
— Non Sire, c’est une révolution2.
Mas há um pormenor que eu ignorava dentro disso — porque a cena é conhecidíssima. O Duque abriu inteiramente as cortinas da cama do Rei, querendo dizer: “Eu espero que vós vos levanteis e tomeis uma atitude!” E esta esperança manifestada por La Rochefoucauld exprime bem o ambiente, a carga psicológica de como foi dada a notícia, e também o grau de modorra de Luís XVI. E o característico da cena ganha com um pequeno pormenor.
O homem vale mais que o universo material
Sendo assim a História, com uma maior ou menor abertura de cortina, imagine-se como é todo o universo!
Um grão de areia examinado no microscópio é um pequeno cosmo. E sobre ele se poderia fazer uma enciclopédia. Quanto mais o universo, o qual, entretanto, na presença de Deus não é senão um grão de areia!
Observemos outro aspecto. A Terra é como um grão de areia em relação ao universo, e este também o seria para os espaços incriados que o devem cercar. Entretanto, neste grão de areia, ou seja, a Terra, Deus fez o trono do rei de tudo, que é o homem. Pôs aqui o Paraíso e começou a conviver com o homem amorosamente.
Percebe-se, portanto, a reversibilidade tremenda. Como o universo é pequeno! Como a Terra é pequena! Como o homem é pequeno! Este é um pouco de lama que o Criador modelou e depois nele soprou o espírito. Mas como aquela lama é uma grande coisa para que Deus tenha Se servido dela para criar o homem. Ó lama histórica, bem-aventurada e feliz para que nela o Altíssimo se dignasse soprar incutindo o espírito! Como nesse instante essa lama ficou valendo mais do que o universo inteiro!
Primeiro, porque este boneco foi modelado por Deus. Em segundo lugar, porque neste molde Ele insuflou um espírito. A lama que se faz carne e começa a andar; o homem que recebe um espírito e inicia a pensar!
Eu me comprazo, às vezes, em pensar qual foi o primeiro instante de Adão. Deus manifestou-Se a ele no primeiro momento, ou só o fez mais tarde? Quando contemplou a Criação, que noção teve ele do Criador?
Somos tão egoístas que, quando imaginamos Adão começando a viver, pensamos que ele, tendo conhecimento de si e do que o cercava, se perguntava se era gostoso, agradável. Infelizmente, é o nosso primeiro movimento.
Mas esses são os pensamentos do homem moderno. A verdadeira pergunta é esta: “Que reflexo de Deus ele captou no primeiro momento?” Mas… aconteceu tudo o que sabemos.
Deus elevou tanto o homem, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós
No novo Paraíso de Deus, que é Nossa Senhora, o Divino Espírito Santo, da carne imaculada da Virgem, fez formar-se a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo. E no momento em que foi concebido, Ele começou a pensar.
Qual foi o primeiro momento da humanidade santíssima de Jesus com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, unidas hipostaticamente? Como foram estas relações? Como foi a primeira adoração, o primeiro ato de amor? Como foi esta hora em que o Espírito Santo tornou-Se Esposo de Nossa Senhora e fez nascer Nosso Senhor Jesus Cristo? Quem pode cogitar essas coisas, tudo o que se passou nesse grão de poeira que é a Terra?
E o que se poderia perguntar quanto ao universo, se num grão de poeira cabe toda esta ordenação?
Certa vez assisti a uma palestra — não sei se o que se afirmava é inteiramente verdade — durante a qual o palestrante dizia que qualquer parcela de matéria é como um planeta em torno do qual gravitam — separados por distâncias que não percebemos, mas que a Ciência pode calcular — moléculas que são como planetas e representam pequenos universos. Si non è vero, è bene trovato3. Estaria na verossimilhança das coisas que elas fossem assim.
Então, qual é esta ordem do universo, a inter-relação de todas as coisas? Consideremos que, na infinita sabedoria de Deus, cada grão de areia se identifica; Ele conhece a fundo o mundo, infinitamente mais do que nós podemos conhecer uns aos outros. De tal maneira que tudo está presente no Criador. Ele fez tudo, conhece tudo e governa tudo. Ora, esta ordem assim é Deus que conhece.
O que se pode dizer a respeito disso? Vejamos algo que está nas excelências da obra feita por Deus. Ele eleva tanto esse grão de poeira, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós, sofreu, morreu e salvou o gênero humano.
Silêncio, murmúrio e exclamação
Se se pudesse dizer — a expressão não é corrente —: na História de Deus, que acontecimento extraordinário passa-se na Terra, a qual é então nobilitada ao máximo, ela que, entretanto, não é senão um grão de poeira! E parece ver-se a soberana sabedoria do Criador, olhando para isso, Ele mesmo encantado e exclamando: “De um lado tão pequeno e de outro tão grande. Que obra Eu faço!”
Esta diferença abismática, desconcertante, nós a encontramos em quase tudo o que marca a ordem do universo. Enormemente grande e enormemente pequeno; enormemente bondoso, enormemente justiceiro; enormemente autoritário, como um rei; mas de outro lado dando aos homens uma completa liberdade.
E assim são os contrastes da História. E nos extremos de todas as considerações encontramos o imenso. Na ponta de todas as “avenidas” está algo que, em linguagem humana, chamaríamos o monumental, mas que excede de fato imensamente o grandioso, o majestoso, o dominador, o ordenado e paira sobre tudo isso.
Mas nossa alma talvez pudesse ver como um pouco esmagadoras as perspectivas dessas avenidas, que são todas elas monumentais. Deus semeou essas simetrias com imprevistos. E há tanta fantasia, tanto inesperado no meio da ordem da Criação, que nos perguntamos: “Mas como isto é assim?” E no entrelaçar ordenadíssimo — se bem que muitas vezes fortuito dela — aparecem coisas que não entendemos. Quanta variedade, mas que monumental unidade!
Dir-se-ia que Deus quis ordenar as coisas de tal maneira que o homem, no último ponto de seu olhar, sempre divisa o grandioso. E se pelo sorriso do imprevisto, do leve, do gracioso, Deus o ajuda a andar rumo ao grandioso, Ele o convida, de surpresa em surpresa, a encontrar aquilo que deveria ter previsto, ou seja, o monumental, que arranca da alma humana exclamações.
Diante deste final, o homem tem três atitudes possíveis: o silêncio, o murmúrio e depois a exclamação, que correspondem a três formas de magnificência, de esplendor, a respeito de cada uma das quais eu poderia depois falar indefinidamente, de tal maneira tudo é grande, vasto, imenso; tudo nos fala da grandeza de Deus.
Se contemplarmos tudo isto com cuidado, encontraremos a ordem do universo.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/9/1981)
1) O termo “Três Revoluções” é aqui empregado no sentido que lhe dá Dr. Plinio em sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, escrita em abril de 1959.
2) – Isso é uma revolta?
– Não Majestade, é uma revolução!
3) Do italiano: Se não é verdade, é bem achado.