A estética e a ideia de Deus

Um dos salientes aspectos da alma de Dr. Plinio era o amor ao belo — pulchrum, em latim —, a respeito do qual pronunciou diversas conferências, algumas delas dedicadas a comentar o livro de Edgar de Bruyne, professor da Universidade de Gand (Bélgica), intitulado L’esthétique du Moyen Age – A estética da Idade Média. A seguir, transcrevemos a introdução feita por Dr. Plinio àquela série de exposições.

 

A propósito da matéria apresentada no livro de Edgar de Bruyne (ver quadro em destaque), cumpre consignar o pressuposto de que nossa noção de estética é um tanto diferente daquela estabelecida pelas opiniões de outros autores que ele, sem tomar partido, apenas compendiou. Explico-me.

A emoção estética redunda num ato religioso

Segundo se infere de ditas opiniões — que não traduzem, saliento, necessariamente a do autor —, a estética não é senão uma matemática encarnada no sensível, enquanto que para nós a emoção estética desencadeia uma série de fenômenos na alma humana, dos quais o último e mais alto é uma sensação de solidariedade, de harmonia entre a coisa observada e o observador. E, por detrás disso, uma experiência interna, inefável, pela qual sentimos como nosso próprio eu é coerente com o ser enquanto ser, que é bom em si mesmo, pois foi criado por Deus.

Em determinado momento do percurso dessa sensação de harmonia, percebo na coisa observada o que ela tem de objetivamente belo e de afim com algo em mim, um predicado comum pelo qual ela e eu participamos da beleza transcendente de Deus. Nesse instante, o conúbio entre nós dois alcança sua plenitude. Embora continue evidentemente existindo, com toda força, uma alteridade entre ambos, essa noção da participação no Criador representa um ponto de convergência e de transcendência mais alto.

De maneira que, conforme nosso ponto de vista, a emoção estética bem entendida termina substancialmente num ato de caráter religioso e metafísico, ainda que subconsciente.

Pares homogêneos e ímpares heterogêneos

Já sobre o que de Bruyne registra a respeito dos algarismos pares e ímpares, da correlação entre os conceitos de igualdade e variedade indefinida, bem como sobre a indicação das propriedades dos números, poderíamos tecer outras observações.

Para bem se compreender a teoria dos números, devemos considerar que, ao lado da concepção que toma os ímpares como princípios de igualdade, há também aquela que os entende como símbolos da desigualdade. De maneira que, por exemplo, o algarismo 5 não é apenas a soma 1+1+1+1+1, na qual cada unidade é rigorosamente igual à outra, mas pode ser a união de dois pares de 2 presididos pelo número 1. E dado o caráter indivisível dos ímpares, este 1 será heterogêneo e diverso dos outros “uns”.

Ilustra de modo muito eloqüente essa nossa argumentação a arquitetura do conhecido Castelo de Cheverny, na França. Nele há quatro corpos de edifício laterais e um central, diverso, pequeno, porém mais nobre. Por esse exemplo nos é dado entender melhor o significado que atribuímos aos números. Poder-se-ia dizer que o número do Castelo de Cheverny é 5, e sob este aspecto ele estaria perfeitamente definido.

Combinações com fisionomias e qualidades diferentes

Prosseguindo nessa análise do texto do de Bruyne, poderíamos ainda imaginar combinações em que os vários algarismos integrantes do número global tivessem como que fisionomias e qualidades diferentes. Seriam orgânicos, como membros de um mesmo organismo. O que é distinto de uma concepção estritamente numeral e anorgânica, própria de uma aula de aritmética na qual se distribui a uma criança bolinhas iguais até completar, digamos, o número 5.

A teoria que levantamos é inteiramente diversa da que se deduz apenas da igualdade matemática dos algarismos, sem contudo pretender que tal igualdade seja falsa ou má.

Conjugação de conceitos díspares

Concluindo esses breves comentários, convém ressaltar que os números não possuem apenas expressão quantitativa, mas também qualitativa. Embora entre os conceitos de quantidade e qualidade haja um abismo intransponível, existe a possibilidade de conjugá-los, aceitando-se o que acabamos de considerar.

Para tomarmos o exemplo de outro monumento francês, pensemos no Castelo de Chambord, que nos transmite a idéia do incontável.

Apesar de ele ostentar uma quantidade de torres passível de ser estabelecida, ao vê-las temos a impressão do  infindo e incontável.

É outro modo de o número exprimir também qualquer coisa de qualitativo.

Exemplo de índole diversa, a poesia com sua métrica: os versos se compõem de sílabas contáveis, mas possuem também algo de incontável, livre ao indefinido, que nos remete para o infinito e, de certa maneira, nos conduz à ideia de Deus.

 

(Extraído de conferência  em 16/1/1973)