A hora do beijo

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

 

O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

Por vezes, para curar é preciso gritar…

Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar
como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

“Senhor, que ouçamos!”

Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, utaudiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.