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Harmonia: uma criatura de Deus

Deus é admirável em todas as suas obras. Quando se enuncia esse princípio, o espírito se volta naturalmente para os seres de várias ordens por Ele criados, desde a pedra até o Anjo. Mas há algo também criado por Deus que não são os seres individuais: é o movimento universal de todas as coisas.

 

Beleza própria do Universo

Não podemos ter uma visão estática do universo, mas devemos considerar que o Criador comunicou-lhe movimento, o qual tem uma pulcritude própria, obedece a regras específicas e reflete, à sua maneira, a perfeição, a sabedoria, a beleza de Deus.

Assim, poderíamos dizer, por exemplo, que a queda de uma folha morta de uma árvore é uma beleza da Criação. Realmente, quando a folha não é arrancada por um tufão, ela se desprende, num momento indefinido, e cai de modo suave, gradual, harmonioso, plácido, num zigue-zague tão elegante que se diria estar voando e não propriamente caindo. E quando ela chega ao chão, seu pouso é leve, delicado; tem-se a impressão que a folha oscula a face da terra, antes de se desfazer e se transformar em terra ela mesma.

Também os movimentos gerais dos astros têm uma grande beleza. Platão imaginava os astros como esferas de cristal que giram em torno de si mesmas, emitindo, cada uma, uma sonoridade própria, constituindo a beleza da música universal. Embora fantasiosa, é uma concepção muito bonita, que talvez contenha no fundo algo de verdadeiro. Quem sabe se as rotações não produzem um som com certa harmonia, que não captamos!

Se uma pessoa conseguisse ver, em seu conjunto, a trajetória das estrelas, perceberia que elas realizam um movimento muito bonito.

Pode haver coisa mais diferente de uma folha caindo do que uma estrela cadente? De modo bonito e majestoso, ela sulca o céu como um risco de fogo e de repente se apaga, dando a entender que a luz se recusa a pousar numa matéria tão vil como o chão; por isso ela se desfaz no ar.

Subindo os graus da Criação, podemos considerar, por exemplo, o movimento dos pássaros ou das borboletas. Elevando-nos ainda mais, podemos analisar um exército em marcha.

No livro “L’Allemagne moderne”, do tempo do Kaiser, há duas fotografias que foram um dos enlevos do meu tempo de menino. Uma dos batalhões do exército efetuando manobras no campo; e a outra, de uma carga de cavalaria. Percebe-se a glória daqueles capacetes de aço, couraças, corcéis brancos; e até daquela poeira – em cavalaria poeira é bonita, quando provocada pelo automóvel é horrenda. Pode-se dizer, por exemplo, “Que beleza, a poeira dos cavalos de Carlos Magno!”, ou “Carlos Magno chegando, nimbado de poeira!”

Um dos modos interessantes pelo qual o homem compreende a beleza posta por Deus no Universo, consiste em analisar o movimento dos peixes. Em geral as pessoas gostam de ter aquário, não apenas para ver os peixes. Se estes ficassem paradinhos e não se movessem, o aquário perderia a graça. Mas as voltas que – sobretudo os peixes japoneses, com aqueles véus prestigiosos – dão dentro da água, giram o corpo, descem, sobem, e os véus executam danças as mais variadas. E são véus bonitos, vermelhos, dourados, e o peixe faz aqueles movimentos com a placidez do ininteligente: vai para frente, até bater a boca no vidro, e para ele não acontece nada, não se assusta, nem vê o que está fora do aquário. Pode-se colocar o dedo ali, que ele não liga, simplesmente faz uma curva elegante de desdém, mexe uma série de véus e vai para outro lado. É a beleza do movimento, da ação.

A beleza da ação do homem

A ação do homem – sobretudo se a considerarmos não como física, mas enquanto movimento espiritual – pode também ter muita beleza. Gosto muito de detectar beleza nas pequenas ações da vida de todos os dias, por exemplo, a do jardineiro que vai cortando a grama com seu alfanje e ela vai saltando. Tem-se a impressão de que ele está fazendo a barba da terra; o alfanje seria como uma navalha. De fato, trata-se de uma ilusão, pois ele não pode cortar a grama rente ao chão. O alfanje vai ceifando e decidindo o destino de milhares de folhas de grama que saltam. Quando o jardineiro termina o trabalho, o gramado fica direitinho, arranjado, tem-se a impressão até de que está limpo; é um movimento bonito. Nunca vi, mas me disseram que o movimento dos ceifadores de trigo tem beleza.

Essas são ações materiais do homem. E as intelectuais?

Por exemplo, um problema bem explicitado, formulado e depois resolvido. É o espírito do homem que está agindo. De uma situação pantanosa ele extrai o problema e define. E quando este parece insolúvel, ele o toca com a ponta de seu dedo mental e o desfaz: a solução é tal. É uma coisa bonita, digna, quer se trate de uma questão metafísica, quer política.

A solução de um problema político tem a sua beleza como ação do homem. Este toma uma situação intrincada, cheia de dificuldades; montou-se contra ele um dispositivo sem saída. O homem olha, atina, e de repente percebe um parafusinho que desmantelado arruína a máquina do adversário; ele o tira e o dispositivo cai. Isso tem pulcritude.

Consideremos a luta à maneira dos torneios medievais: lança no peito do adversário, de frente, um dos dois cai do cavalo. Julgo isso muito mais bonito do que a rasteira, embora esta possua o seu charme próprio, inconfundível.

Há certos homens a quem Deus concedeu o dom da ação de modo excelente

Há certos homens a quem Deus concedeu o dom da ação de modo excelente. Qualquer coisa que realizem, uma deliberação, uma gentileza, uma manobra que atinge o seu auge, causam a impressão semelhante à produzida, por exemplo, por uma música bem tocada. Porque aquela atitude quase se destaca do objetivo, para constituir uma ação vista enquanto tal. E, isolada, tomada como técnica de realização, assume uma formosura e um brilho especial.

Recordemos um problema resolvido por Talleyrand. No Congresso de Viena, a França era a grande derrotada. Talleyrand compareceu nessa reunião das grandes potências da Europa, por consideração de Metternich.

Além deste, estavam o representante inglês, Lorde Castlereagh, o prussiano, o Czar da Rússia e seus conselheiros. Entra no salão o representante prussiano e vê Talleyrand, indolente, impassível. Já essa indolência tem beleza: é o fraco que pode ser esmagado pelo forte, mas é tão inteligente que não teme ver o touro chegar perto. Porque sabe que na hora “H” ele põe um lencinho vermelho e o touro passa de lado.

Em certo momento, Talleyrand fez uma declaração, na qual se referia ao “direito dos povos”.

O embaixador prussiano o interrompeu perguntando: “Eu quero saber o que faz o direito nessa reunião?!”

Talleyrand sorriu e respondeu: “Uma coisa muito importante: ele lhe dá o direito de estar sentado aqui!”

Depois de dito isto, o embaixador ficou quieto. Isso tem sabor! Esta ação é muito bonita porque mostra a superioridade da inteligência sobre a força. Esta vem e investe, aquela faz um laçarote e a força dobra-se diante do prestígio da inteligência. E este laçarote a inteligência faz com uma indolência, aliás aparente, pois detrás dela há uma sagacidade suma. Trata-se de uma indolência aristocrática, que com facilidade toca o barco para frente.

Outra ação do mesmo Talleyrand. Napoleão está para cair. O futuro Carlos X, em nome de Luís XVIII de Bourbon, está nas fronteiras da França. Talleyrand quer se reconciliar com os Bourbons. Ele manda um emissário a Carlos X, levando uma mensagem somente com estas palavras: “Monseigneur, estamos fartos de glória; por fim, traga-nos a honra!”

Está dito tudo. Quer dizer, Napoleão ficou arrasado, pois teve glória sem honra. O que entra agora vem com honra, embora sem glória.

O futuro Carlos X, grande deleitador de pratos desses, ficou contente, e assim se fez a reconciliação. Foi esta uma ação humana cheia de beleza.

São Gregório VII, levando o imperador do Sacro Império Romano Alemão a pedir-lhe perdão em Canossa, fez também uma ação plena de pulcritude. Tornou patente a consciência de que o Papa tem de ser o mais alto hierarca da Terra; e de que um crime é tanto mais grave quanto mais nocivo à Cristandade; portanto, o ato praticado pelo imperador contra o papado é o mais grave de todos os crimes e pede uma penitência.

O Pontífice estava numa região nevada, montanhosa, na pior das estações; o imperador, se quisesse, poderia ir até lá para pedir perdão, mas o Papa não se moveria de lugar. O imperador foi de trenó, às vezes andando de gatinhas pela neve para implorar clemência a São Gregório VII.

Este deixou-o esperar durante três dias do lado de fora do castelo. Afinal, a pedidos de íntimos, e não por seu desejo, São Gregório VII recebeu Henrique IV.

Vê-se aqui uma ação humana cheia de majestade, de sacralidade, em que o poder temporal tem que se dobrar diante do espiritual, porque a Terra está infinitamente abaixo do Céu. E ninguém tem o poder daquele a quem foi dito: “Tudo o que desligares na Terra será desligado no Céu; tudo o que ligares na Terra será ligado no Céu”.

A atitude do famoso rei Poros, da Índia , diante de Alexandre é digna de nota. Este levou de roldão os povos da Ásia e chegou até a Índia, onde mandou prender esse homem, o qual foi acorrentado e reduzido a escravo, como se fazia aos povos dominados na Antiguidade. Quando o rei chegou diante de Alexandre, este lhe perguntou:

– Como queres ser tratado?

– Como rei!

Ele respondeu com tanta e tanta grandeza que Alexandre disse-lhe:

– Pois não! Desatem as correntes e tratem-no como rei.

E o soberano retirou-se sem agradecimento, porque era rei.

Outro exemplo de beleza nas ações humanas: o Duque de Saint-Simon pediu uma audiência para Luís XIV, a fim de entrar numa briga com o rei. Luís XIV sabia disso e mandou dizer a Saint-Simon: “Tal dia e tal hora, o senhor estaria livre?” Saint-Simon deu esta resposta magnífica: “Sire, je suis fait pour attendre vos heures” – “Majestade, eu sou feito para esperar suas horas”. Foi uma resposta humilde, mas com toda a classe que tem a humildade; uma ação de alta categoria de nobreza.

Uma história dos atos humanos

Se tivesse tempo, eu gostaria de escrever uma história dos atos humanos impressionantes, e uma teoria da ação humana. Tomaria os atos enquanto atos e não principalmente pela sua finalidade. E consideraria os estilos de ação, os modos, etc., ordenando-os e sistematizando-os.

Essas coisas fazem com que a virtude da sabedoria torne a vida humana vivível. Não é preciso ir ao teatro, ao cinema, passear e nem conversar muito com os outros. Basta termos as antenas desdobradas para captar o que a vida quotidiana e a História oferecem de exemplos dessa natureza; e saber analisá-los.

Às vezes, encontramos essas coisas em pequenas ocasiões porque as grandes são raras.

Quando assisto a uma conferência, estando eu também na mesa, gosto muito de prestar atenção na co-relação entre as fisionomias dos ouvintes e os altos e baixos do conferencista. É uma coisa curiosíssima.

Um conferencista controla seu auditório como um violinista toca seu violino. A questão é que, na maior parte dos casos, o conferencista não sabe dirigir o auditório. Se ele soubesse, seria uma coisa lindíssima observar as partes verdadeiramente boas de sua conferência, pois os auditórios, em geral, em que pesem os conferencistas, são juízes muito eficientes. Eles normalmente percebem o valor do conferencista, e sua sanção contra este não consiste nas poucas palmas no fim, mas no não-prestar atenção. Quando o conferencista começa a dizer coisas “pocas”(1), a atenção do auditório desvia e some. É a vingança do ouvinte. Não podendo se levantar para protestar, ele deixa de prestar atenção; pode-se perceber como esta vai morrendo no auditório.

Às vezes, formam-se ilhotas ou até arquipélagos de atenção. Quando o conferencista é razoável, aquilo se transforma em terra firme; quando é “poca”, os arquipélagos vão diminuindo, e por fim é o mar, onde existem um ou outro rochedo, um fanático de conferência que presta atenção; o resto está longe. Terminada a conferência, há aquelas palmas convencionais, que podem ser longas, mas têm o ruído de convencional; todo o mundo se levanta sem pressa. Quando o conferencista é cacete, ninguém tem pressa de sair, e nem coragem de se mover. Os ouvintes saem meio entorpecidos da conferência.

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

(Revista Dr. Plínio n° 137)

1) Palavra criada por Dr. Plinio para exprimir algo medíocre, mesquinho.

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